sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Contemporâneo

A minha aula de dança contemporânea é uma piada.

Toda terça e quinta fim de tarde é hora de me matar de rir e de quebra mexer o corpitcho.

A turma é ótima: duas ex-professoras minhas que dançam desde que o mundo é mundo e já têm a tranqüilidade para curtir a dança de um jeito mais sussa, um figura engraçadíssimo que só fala besteira e um outro figura meio quieto que chegou faz pouco tempo e ainda se assusta com as nossas porralouquices.

A professora? Olha o naipe:

“Ju, tem que deixar a perna nesse final.”

“Como assim deixar a perna? Como?”

Ela vira, pega um martelo gigante que estava do lado do som e vem na minha direção, instrumento ameaçador em punho.

“Assim ó.”

Só risada, lógico.


O tal martelo, aliás, é figura carimbada nessa aula. Quem já fez contemporâneo sabe que a gente fica bem íntimo do chão nos movimentos. Tem que rolar, escorregar, pintar e bordar deitado, sentado, e qualquer preguinho solto pode fazer um estrago federal. Pois volta e meia um sai da sala desembestado atrás do tal martelo para macetar algum prego desgarrado e é óbvio que isso não passa despercebido e vira motivo de piadas homéricas.

Tudo, aliás, vira piada. A gente passa metade da aula falando besteira e a outra metade rindo do que foi dito. Um completa a zoação do outro e assim a gente segue, feliz da vida. Nem sei como conseguimos montar a coreô do final do ano. E olha que ela é séria, densa, música profunda e sentida.

Na boa, vai ficar linda. Vamos estar compenetrados e preenchidos e sinceros e dançando com a alma, mas lá no fundo, bem no fundinho, vamos estar é gargalhando de tudo que já rolou durante a criação dessa coreô. Isso se ninguém entrar com o tal martelo. A ver.

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Chuva

Adoro chuva forte. Pé d’água mesmo, adoro. Sempre gostei. Viro a poltrona para fora e olho a água caindo, nariz no vidro embaçando a vista.

No décimo terceiro andar eu não consigo sentir o cheiro da terra molhada que subia e tomava tudo na casa dos meus pais. Aqui é só o cheiro da chuva, o ar úmido e diferente que anuncia o temporal.

Se não sinto, vejo mais terra do que quase todo mundo. Da minha casa eu observo do alto a casa da cidade inteira ficar molhada, vejo o preto da rua virar prateado, as árvores dançando enlouquecidas a dança que lhes leva as folhas, os frutos e às vezes os galhos. Elas dançam mesmo assim. Felizes.

Eu só fico, só, imóvel, observando tranqüila a transformação das coisas. As pessoas se escondem, os carros param, as luzes somem, o vento canta alto em várias vozes enquanto a minha rua se afoga na corredeira que leva lixo, lava terra, limpa o caminho por onde eu passo toda manhã.

Eu aqui, segura e aquecida me encolho no meu canto enquanto o mundo se chacoalha ao meu redor, sensação de paz no meio da torrente, em pleno vendaval.

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Sangria Auricular

Eu já tinha virado uma peneira com aquele tanto de agulhas penduradas pelo meu corpo quando o meu terapeuta virou e disse:

- Hoje eu vou fazer uma sangria auricular em você.

Imediatamente eu imaginei meia dúzia de sanguessugas se refastelando na minha orelhinha tão bonitinha e a idéia não me pareceu nada agradável. Contei para ele a minha visão da coisa, ele morreu de rir e disse que não tinha nada a ver.

É, eu descobri logo que realmente não tinha nada a ver, mas antes tivesse porque talvez as sanguessuguinhas fossem mais gentis e menos sanguinolentas para com a minha pessoa indefesa ali naquela maca.

Ele fez uma massagem daquelas brabas por toda a orelha, passando por uns pontos tão doloridos que quase que a honra da mãe dele entrou na roda. Depois pegou umas agulhas pequenas (não se iludam com o tamanho, elas fazem um belo estrago...) e disse que teria que tirar pelo menos 3 gotas de sangue de cada ponto. Aparentemente a minha orelha estava precisando disso há tempos e essa tal sangria iria fazer uma bela diferença na minha saúde física e mental, além de aumentar a minha imunidade.

Já no primeiro (de muitos) ponto eu percebi que a coisa ia ser sofrida. Ele picava doído várias vezes em cada lugar, depois apertava, apertava. Não desistia enquanto as três gotinhas não saíssem e eu ali, sonhando com as boas e velhas sanguessugas.

Juro que eu não estava sendo patife. A dor não era a simples dor das picadinhas, ah, quem dera... Era aquela dor medonha que só quem já fez acupuntura auricular conhece, aquela que dói na alma e que te faz xingar até a décima geração do fulano que teve a idéia brilhante de enfiar coisas nas suas pobres orelhas. Para completar, a bendita ainda vinha acompanhada de vários calafrios esquisitos que me percorriam as pernas e os braços e me faziam sentir frio em um dia absurdamente quente.

Sei que no final eu saí de lá completamente grog. Zenzinha mesmo.

Cheguei em casa e a primeira coisa que fiz foi olhar no espelho para ver o tamanho do estrago. Qual não foi a minha surpresa quando eu vi... Nada. Não havia marca nenhuma. O moço fez aquele salseiro todo na minha orelha e não deixou traço de nada. Certeza que isso faz parte da técnica de tortura chinesa...

Apesar do sofrimento momentâneo, acho que a coisa é boa mesmo porque eu estou me sentindo ótima. Passei o dia praticamente flutuando e agora estou até me divertindo com o perrengue que eu passei na hora. Se algum maluco por terapias alternativas quiser tentar a técnica eu recomendo. Vale a pena, o depois compensa o durante e a experiência até que é interessante.


Sado-masos também vão curtir a parada. É só pedir que passo o telefone do terapeuta.

terça-feira, 18 de novembro de 2008

Doce

Não tem coisa mais doce que o sorriso de uma criança. Ainda mais se essa criança for a sua paixão.

Se esse sorriso vier na sua direção cambaleando em um ardarzinho de bêbado (ou da múmia Imhotep, como diria o meu cunhado), aí você vai estar completamente perdido mesmo. Fisgado, de quatro, head over heals.

Você vai esquecer da hora, vai dar risada de tudo, vai achar lindas as manhas quando ela cair para trás fazendo charme, vai se derreter com os olhares marotos de quem aprontou alguma, vai ficar horas conversando tranqüilamente com a pequena, emitindo sons que você não faz a menor idéia do que significam e mesmo assim vai entender perfeitamente tudo, o tempo todo.

Você vai curtir junto cada descoberta, cada nova brincadeira. Vai morrer de rir quando ela apagar a luz e chegar pertinho do seu rosto para fazer graça, e vai continuar achando isso a coisa mais linda e engraçada mesmo que ela se repita por (sei lá...) trinta ou quarenta vezes.

Você vai esquecer de tudo, das suas nóias, das suas coisas, vai esquecer que é segunda-feira e vai voltar rindo que nem um idiota para a sua casa depois da meia noite, querendo que todo dia seja segunda-feira.

Você vai dizer tchau sem querer dizer, vai olhar fundo naqueles olhinhos que não querem que você vá embora e pensar que devia passar muito mais tempo com eles, antes que eles cresçam e mudem.


Eles crescem tão rápido...

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

O Senhorzinho

Hoje um senhor se assustou com o Luke, pisou em falso, bateu em um degrau da pracinha e caiu para trás. Eu só olhei enquanto ele caía em câmera lenta na minha frente. Não tive tempo ou iniciativa ou sei lá para fazer nada.

Só depois que ele já estava estirado no chão, cotovelo ralado, roupa toda suja de terra, é que eu saí do transe e fui ajudar. Tadinho, ficou todo assustado, desorientado mesmo. Deu dó de ver aquele senhor, de idade já, calça social, camisa, sentado no degrau sem saber o que fazer. Ele me lembrou o meu avô. Mesmo jeitinho, mesmo olhar.

Dez segundos depois já havia quatro pessoas além de mim oferecendo ajuda para ele e perguntando se estava tudo bem. Pegamos as coisas do chão, conversamos, acalmamos. Ele puxou o lenço do bolso, daqueles lenços de vô, e limpou o sangue do braço devagar. Olhou para mim, para as pessoas, enxugou o suor do rosto e tentou levantar. Cambaleou, as pernas falhando. Nada feito. Caramba. E eu longe de casa sem poder fazer nada. Foi então que um casal cheio de compras penduradas se ofereceu para levar ele em casa. Correram até o outro lado da rua, entraram, deixaram tudo por lá e dois segundos depois apareceram com a chave na mão, todos preocupados. O senhorzinho entrou no carro com a nossa ajuda, lenço no cotovelo, as pernas durinhas... Que dó.

Pelo menos ele estaria logo em casa, o esfolado vai sarar, o nervoso vai passar, o sangue do lenço vai sair na água e ele vai ficar bem. De permanente só a lembrança do susto.

Apesar de tudo voltei para casa com uma sensação boa. Existe mesmo gente do bem nesse mundo. Algumas pessoas, perdidas por aí. Como aquele casal que parou tudo para levar um senhorzinho desconhecido em casa, no meio do dia, em plena quinta-feira. É só uma questão de encontrar.

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Será?

Um novo nome. Cheio de possibilidades.

Será que esse nome ainda vai me ser especial? Será que o seu som, o formato dessas letras combinadas vai fazer a minha respiração mudar, acordar as asinhas adormecidas no meu estômago ou me fazer sorrir sozinha na frente do computador ou pendurada no telefone no meio da madrugada?

O que faz de alguém a pessoa mais importante da sua vida? Qual o momento exato em que tudo muda?

Será que esses olhos vão acordar com os meus nos domingos de manhã? Será que ficarão comigo, nos meus sonhos, mesmo depois que forem embora? Será que a minha vida vai ser diferente por causa deles? Será que eles ainda vão olhar para mim doces ou carregados de milhares de perguntas quando eu menos esperar? Será que esses olhos ainda vão chorar por mim? Ou comigo?

Será que eu vou levar essas mãos para passear nas minhas? Será esse o número que eu vou discar quando tiver algo de novo e importante para dividir com alguém? Será esse o nome que eu vou sussurrar ou gritar sem pensar?

Será?

Será que esses serás vão me acompanhar a cada nova possibilidade?

Quando será que esses serás vão deixar de ser?

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

O Ogro do Banheiro

Não tem gancho para pendurar a bolsa.” Soltou fula da vida a mulher no banheiro ao lado do meu. Fula mesmo. Eu podia praticamente ver a fumaçinha negra subindo da cabeça dela por cima da divisória.

E continuou. “O que eu faço agora sem lugar para pendurar essa bolsa?” O tom de voz aumentando enquanto eu ouvia ela se mexer sem parar, super incomodada.

Eu fazia cara de ué no cubículo ao lado. Gente, pra quê tanto furdunço por tão pouco? Bota no chão, pendura no ombro, na fechadura, sei lá. Vale mencionar que o banheiro era do teatro. Estávamos de boa esperando para assistir a um show de música que prometia ser fantástico. Eu estava de boa, já a criatura...

Ela continuou bufando, até que alguém do lado de fora se ofereceu para segurar a tal bolsa e recebeu como resposta alguma coisa ininteligível, que eu interpretei como sendo “não, humpf, deixa prá lá, grrrrr, eu me viro.”

Eu só ouvindo do lado de cá, usando a minha melhor cara de credo gente, eu ein. Pelos ruídos emitidos, a dona aparentemente conseguiu vencer o desafio terrível de fazer xixi segurando a própria bolsa. Deu descarga, abriu a porta, foi lavar as patinhas.

“Não acredito. Não tem papel para enxugar a mão. Mas que droga. Viu só, é por isso que não se tem cultura nesse país. O jeito é ficar em casa assistindo TV de baixa qualidade. Humpf.”

Eu me apressei para sair a tempo de ver a cara da fulana. Não deu. A cara dela na minha cabeça teria que continuar sendo a da minha imaginação mesmo, uma dessas bem encruadas, mal humoradas, amarguradas e tudo que é ada que se possa pensar. Ôxe. O marido da criatura (se é que ele existe) já deve ter pago todos os pecados dessa e das próximas trocentas vidas.

Voltei para o teatro para ver um show incrível, delicioso, e esqueci, obviamente, do ogro do banheiro. Curti horrores o som maravilhoso, os músicos, letra, música e entrelinhas. Chorei, até. Lindo mesmo.

Eu até concordo com a fulana mauhumordoinferno que a estrutura cultural nesse país não é lá uma maravilha, mas coisas assim valem definitivamente um xixizinho sem gancho de bolsa e uma enxugada de mãos na calça jeans.

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Mateus

De olho na câmera ele sorriu para mim, de novo e de novo, olhar de menino peralta entre duas garotinhas, uma de chapéu florido, outra sem. Elas sem cabelo, ele com uma pequena falha na parte de trás.

Há 50 dias recebendo terapia intensiva contra o câncer recém descoberto, Mateus ainda tem a energia que falta aos pequenos e pequenas veteranos no tratamento. Reunidos todos em uma sala da seção de radioterapia do hospital para assistir ao show da minha querida amiga Tatiana Rocha, o que se via era um mix de olhos atentos, boquinhas com sorrisos cansados, pais com sorrisos momentaneamente aliviados e o riso de Mateus. Aberto, matreiro, infantil.

Fora de casa desde que começou o tratamento, conhece todo mundo na recepção do hospital, brinca com funcionários, pacientes, brinca com sua mãe e sem entender direito o que se passa, ainda acha tudo aquilo uma grande brincadeira.

Adorou o show. Riu, gargalhou, cantou, ficou maravilhado com os bonecos e, no final, dançou. Acontece, gente, que ele não consegue andar. Não mais, me disse a mãe. Precisa de ajuda para se locomover, precisa de apoio, de colo.

Ontem esse garoto dançou.

Preciso dizer mais alguma coisa sobre o show? Não. Nada mesmo.

Parabéns, Tati. O trabalho é lindo e ontem vocês fizeram a diferença para muita gente por lá, eu inclusive.

Justificadíssimas todas as lágrimas daquele teu desabafo.

“Para afastar a tristeza o negócio é dançar tango com o saci-pererê
Chama o gato de alice para tomar ponche assim ninguém vai ver
Mas põe pra fora teus demônios faz a grande serenata
Sai cantando pelo mundo chutando lata
Para tudo tem uma solução
Se tem medo pega em minha mão.”




Link para as fotos: http://picasaweb.google.com/jujuhilal/CantancasNoBoldrini?authkey=9-M9suyULLM#

domingo, 2 de novembro de 2008

Ser

Vou participar daqui a alguns dias do espetáculo de uma instituição para crianças com necessidades especiais. São principalmente autistas, mas existem alguns com síndrome de Down e dificuldades físicas e motoras.

O trabalho é inspirador. Esse é o terceiro ano que eu faço isso e acompanhar a superação daquelas crianças e a alegria com que elas participam do espetáculo é uma lição imensa. Maior ainda a lição dos pais que têm suas vidas completamente transformadas por aqueles pequenos especiais e se doam completamente, aprendendo junto com eles.

Eu me emociono super e umas lágrimas sempre escapam na coreografia do bailarino cadeirante Samuel e na dança das mães com os bebezinhos de colo. Arrepia mesmo, só de lembrar.

Esse ano vou fazer algumas poucas cenas e cantar três músicas, uma delas em um andaime a 4 metros do chão. Como se não bastasse, vou ser içada até o alto em uma cadeirinha de rapel e lá ficar, balançando e fazendo movimentos X que eu ainda não descobri quais são. Medo. Muito medo. A verdade é que altura e eu nunca nos demos muito bem. Pensei muito antes de aceitar essa coisa toda longe do chão mas, quer saber? Hora de vencer alguns medos. Vou fazer. Me borrando, é verdade, mas vou fazer.

Quinta tive meu primeiro ensaio e fui apresentada ao Daniel, o aluno que vai me pegar no colo, balançar e colocar na cadeirinha de rapel. Sempre que existe uma interação maior com eles é importante a identificação, a confiança. Eles precisam estar à vontade para que as coisas aconteçam. Pois bem, cheguei, dei a mão, abracei, “oi, tudo bem?” Ele me cumprimentou todo sério, distante, e assim continuou. Não gostou de mim, pensei.

Mais tarde, no almoço com os professores: “Logo que você entrou na sala e eu disse para o Daniel que era você que ele ia carregar, ele botou a mão na cabeça, fez uma cara de medo e disse - A Andressa vai me matar.” A noiva dele, gente, aluna também. Ciumenta que só ela, ia ficar fula da vida por ele me carregar no colo e fazer a cena comigo. Pode? Vou ter que me comportar direitinho. Estou de boa de me atracar com a Andressa no meio do espetáculo.

Dependendo do andar da carruagem, estar içada a 4 metros do chão talvez não seja de todo mal, afinal.