quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Folhetim Vagabundo - História 4, Capítulo 3




Essa história começa aqui: http://portudoquesinto.blogspot.com/2009/10/folhetim-vagabundo-historia-4-capitulo.html

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Tudo começou três anos, dois meses e vinte e um dias antes, naquele fatídico 29 de setembro de 2009. A idéia aparentemente inofensiva, a proposta irrecusável, chegou por e-mail para os escolhidos que a acataram sem terem a menor noção de onde estavam se metendo, do caminho que trilhariam a partir dali.

A aceitação da proposta havia sido o divisor de águas nas vidas daquelas seis pessoas, o ponto de virada, o início de uma jornada fantástica jamais imaginada.

A proposta? A criação de um folhetim semanal escrito a 12 mãos, um autor por dia continuando a história escrita até então. Nascia naquela data o revolucionário Folhetim Vagamundo.

Acontece que o projeto alcançou instantaneamente uma popularidade nunca antes vista. A genialidade das histórias, o formato atípico, os desvios de pensamento, as mentes brilhantemente deturpadas, os temas esdrúxulos, os elementos recorrentes e a forma de inteiração entre os autores arrebataram e arrebanharam leitores em todo o globo. Os capítulos diários passaram a ser aguardados ansiosamente pela gigantesca e crescente legião de seguidores fiéis. Revistas, documentários, encartes jornalísticos, filmes hollywoodianos, grupos de discussão, páginas na Wikipedia, tablóides, programas de TV e uma infinidade de formatos de mídia dedicaram-se a cobrir incansavelmente o projeto. Os textos, escritos originalmente em português-brasileiro, passaram a ser traduzidos para milhares de idiomas e dialetos e lidos em todos os confins do planeta.

Diz-se inclusive que a ânsia generalizada pela leitura do famoso folhetim levou a Internet a lugares até então desprovidos de conexão. Sim, o folhetim espalhou o progresso, ampliou mentes, quebrou paradigmas e transformou os 6 escritores em ídolos mundiais, mais conhecidos do que Madonna, Michael Jackson, o Papa, a mulher melancia, o Obama e a Barbie juntos. As mentes brilhantes e as personalidades cativantes, aliados aos dotes físicos inquestionáveis dos autores, transformaram-nos nas celebridades mais cultuadas do universo, verdadeiros líderes popintelectuais com direito a bonequinhos articulados, álbuns de figurinhas e fã clubes enlouquecidos.

Para não se entediarem com o folhetim, os 6 magnânimos decidiram ao longo do tempo desafiarem-se, sacaneando-se mutuamente, provocando-se e colocando-se em situações aparentemente insolúveis. Assim, os capítulos passaram a contar com finais absolutamente inesperados, com a conjunção de objetos sem nexo como frutas estragadas, partes de animais, líquidos com lactobacilos vivos e instrumentos inusitados. A cereja do sundae passou a ser, então, a sinuca de bico criada e a expectativa pela saída para o imbróglio a ser proposta pelo próximo participante.

Nos três anos que se seguiram o projeto continuou a todo o vapor, aproveitou o potencial inesgotável daquelas mentes brilhantes e extrapolou as fronteiras da escrita, criando obras fantásticas variadas como sinfonias, esculturas, castelos de areia, musicais da Broadway, quadros de pontilismo, cartoons, coreografias, peças de teatro, ballets de repertório e ainda desvendando a maioria das grandes questões não resolvidas da humanidade. Até onde se sabe, mesmo os críticos mais exigentes passaram a dividir a história da arte em antes (Era Clueless) e depois do folhetim (Era Vagamúndica).

Ocorre que em 2012 o medo do fim do mundo se espalhou pelo planeta. Tudo culpa de uma profecia do avançadíssimo calendário Maia e da história número 3 do Folhetim, aquela clássica do sonho de Deus. Pois é, o bicho pegou e a humanidade pirou na batatinha mesmo. Pânico generalizado. Caos. De acordo com a profecia a data fatídica seria 21 de dezembro de 2012. O que lhes restava como último recurso? Pedir arrego às 6 mentes folhetinescas, aos líderes intelectuais, aos únicos que poderiam com o seu brilhantismo reinventar a roda, desvendar o mistério e, na pior das hipóteses, deixar como legado uma última obra de arte tão perfeita e bela que seria tida pelo porvir como o emblema de uma raça extinta avançadíssima.

O que nos leva de volta às 11:01 daquela manhã de 20/12/2012...


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quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Folhetim Vagabundo - História 3 - O Imbróglio no Meio de Tudo


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Chegou em casa agoniado. Não sabia o que fazer com aquilo tudo dentro do peito, Carlos Frederico, Carlos frederico, Carlos Frederico.... Car-los-Fre-de-ri-co, Maura Rúbia, malditas alianças e o pedido. Argh.

Abriu a porta do quarto e esgueirou-se por debaixo das cobertas até aconchegar-se no colo ossudo da mãe. Não disse nada, não precisou. Ela sempre o compreendera, sempre soube o que pensava, o que sentia, e naquele dia não seria diferente. Mãos alisaram cabelos desgrenhados e Matheus Ricardo adormeceu um sono nervoso sob os olhos atentos da mãe.

E veio o sonho. Deus entediado, o anjo fofo taurino, o fim do mundo por vir, redemoinhos de substância amorfa, o buraco negro. Quando avistou os olhos da pessoa que chegou chegando, acordou assustado, a testa encharcada e outras partes também. Sua mãe sorriu um riso terno: - Matheus Ricardo, Matheus Ricardo – ela amava o som do nome que havia escolhido para o filho, nunca dizia só Matheus ou só Ricardo, os dois nomes juntos tinham a sonoridade perfeita - molhando a cama de novo? Ô meu menino...

Seguindo as dicas de seu terapeuta de anos, Matheus Ricardo anotou os detalhes do sonho, descreveu as nuvens, as conversas. Aquilo havia sido muito intenso e certamente escondia uma lição, uma dica, um sinal. Dona Jacintha, limpando os líquidos da cama já cheia de manchas de tons amarelados diversos, pensava em como solucionar a sinuca de bico em que o filho se encontrava.

Acompanhou por toda a sua vida as angústias de sua cria. Matheus Ricardo falava durante o sono e entregava-lhe, sem saber, todos os acontecimentos, medos e sensações que experimentava, dando-lhe informações suficientes para intervir na vida do filho como bem entendesse.

Quando Maura Rúbia apareceu, achou que os problemas amorosos de seu pimpolho estivessem finalmente solucionados. Ela era perfeita, pensou. O nome duplo de sonoridade perfeita, o gosto pelo jogo de tranca, pelas conversas sobre testes de revistas femininas, a personalidade forte, racional, decidida... O gênero. Finalmente Matheus Ricardo deixaria daquela besteira de brincar de gogo boy com os amigos de peito depilado, namoraria uma fêmea de boa família e lhe daria um neto.

Acontece que nos últimos tempos a relação não estava mais como antes. A química, a afinidade, as conversas sobre os testes de revistas, os jogos de tranca, nada mais lhe dava o prazer de antigamente. Seis anos haviam se passado e Jacintha sentia que sua relação com Maura Rúbia havia se esgotado, e que assumirem um compromisso àquela altura seria um erro terrível. Para completar, Matheus Ricardo voltara a ter amigos depilados, de cabelos esquisitos, lenços de estampa xadrez, ipods com músicas eletrônicas e cds de musicais norte americanos. E então Carlos Frederico apareceu. Desde que o jovem alto, estilo Gianecchini, surgira na vida de seu filho, os dois não se desgrudaram mais. Matheus Ricardo voltou a assobiar canções do ABBA, a treinar seus passos de gogo boy, voltou a sorrir e à noite só se ouvia o nome de Carlos Frederico povoando seus sonhos. Aquele seria mesmo o seu caminho e ela, Jacintha, como uma boa mãe, teria de entender.

Os conflitos do filho, porém, permaneciam. Ele achava que tinha uma dívida para com a sociedade, para com Maura Rúbia e insistia na realização do noivado. Comprara as alianças no dia anterior e chegara dizendo que faria o certo. À noite se encontraria com Carlos Frederico para dar-lhe a notícia e seguiria o seu destino ao lado da mulher que seria a nora perfeita para sua mãe.

A noite com Carlos Frederico começara perfeita. Falaram sobre tudo, boates, os lançamentos da Broadway, o timbre da Barbra Streisand, a SPFW, as tendências em cortes de cabelo. A conversa fluía fácil, olhares se encontravam, mãos se tocavam, a companhia era boa, o interesse genuíno. Uma coisa levou a outra, o vinho alterou os estados e a noite acabou com os dois exauridos e satisfeitos na horizontal. No auge do aconchego, Matheus Ricardo deu a bombástica notícia a Carlos Frederico de que iria se casar com Maura Rúbia e de que já havia até comprado as alianças.

Indignadíssimo e com o coração ferido, Carlos Frederico fez a louca e saiu desembestado pela rua, aos prantos, echarpe esvoaçando às suas costas. Matheus Ricardo na janela acenava, pedia perdão e limpava o nariz nas cortinas de voal. Do outro lado da rua Maura Rúbia observava imóvel a interação.

Sem esboçar qualquer reação, pegou o celular e apertou a discagem rápida número 2. Esperou.

- Alô. Maura Rúbia?

- Que cena bichesca foi essa agora, Matheus Ricardo? Olha eu aqui do outro lado da rua. Eu vou ligar para a sua mãe.

Desligou e apertou a discagem rápida número 1.

Sem reação, Matheus Ricardo fechou as cortinas, encolheu-se em posição fetal e esperou a exaustão trazer-lhe o sono. No quarto ao lado, enquanto ouvia os desaforos da mulher que seria sua nora, Jacintha tomou uma importante decisão.

Os sinais do sonho do filho sobre o Todo Poderoso, o tédio divino e o fim do mundo vieram apenas dar-lhe força para que tomasse as atitudes que sabia ter de tomar. A felicidade de seu filho guiaria seus passos.

Deus Todo Poderoso, por seu turno, teve no sonho do filho de Jacintha os sinais de que precisava para sair da sinuca de bico em que Ele próprio, o Magnânimo, se encontrava. Sabia agora o que teria de acontecer e gostava do que estava por vir. Gostava muito da idéia. Novos ares, pensou, ares de inexistência lhe fariam bem.

Preocupava-lhe apenas a questão não resolvida da pessoa que chegaria chegando...

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terça-feira, 20 de outubro de 2009

Vale dos Girassóis

A gente acordou cedo com a luz do dia se esgueirando pelos furinhos da barraca e com os barulhos de mato, levantou acampamento e se mandou pra trilha.

Que trilha...

O começo foi só descida, mas uma descida daquelas que carro não encara, sabe? Daquelas que não acabam mais e que fazem a gente querer chorar só de pensar na volta?

Pois é. Caímos bonitas no conversê de um mineirinho. “Ah, são uns 7km de caminhada ao todo, ida e volta. Logo ali. Vale a pena.” Olhei para a Tati , ela olhou para mim e pensamos - sussa, 7km a gente tira de letra. Somos os caras da trilha. Vamo que vamo.

O belezinha só esqueceu de dizer que o logo ali tinha uma inclinação de uns 70 graus. Tomamos, lógico. NUNCA confie nas indicações de um mineiro. NUNCA.

OK, bora. Anda que anda que anda comendo pó até que chegamos à cachoeira.

A água forte e gelada na pele quente, nas costas doídas, é uma das melhores coisas que se pode sentir quando se quer parar de pensar. Ficamos um tempão por lá, escalando pedra, falando da vida, deixando a água lavar, levar.

Tudo passa, certo? Certo.

Bora.

Bora que a fome estava grande e o caminho pela frente era longo e íngreme.

Mais umas indicações mineiras daquelas e uma subida que não acabava nunca e a gente chegou no melhor lugar do mundo naquele momento, o restaurantezinho chamado Vale dos Girassóis.

É assim: uma casinha de desenho daquelas quadradinhas, uma porta, duas janelas, tijolo à vista ao pé dos morros, antes do vale, feijão plantado ao redor, uma horta com verduras, legumes e flores, Chico Buarque no volume certo, suco de maçã fresquinho e duas pessoas queridíssimas.

A comida é tirada da terra na horinha de comer. Verduras que eu nem conhecia saíram direto do chão avermelhado para o meu prato azul, o ovo é caipira, as flores temperadas colorem o verde e há quem diga que são afrodisíacas. Há quem diga... Eu não estava em um dia para conferir mas quem sabe... Não duvido.

O papo bom, fácil, divertido fez a gente ficar, ficar. Quando o sol já estava baixando fomos embora de barriga cheia, alma lavada, cabeça tranqüila, e a subida da volta nem fez tanto estrago quanto a gente tinha imaginado. Umas panturrilhas doídas e só.

O Vale dos Girassóis é desses lugares especiais para se voltar de quando em quando. Refúgio mesmo, botão de reset. Sempre que der vou aparecer por lá para recarregar a bateria, acalmar o peito e quem sabe dia desses comprovar aquela história das flores afrodisíacas...

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Os Prêmios

Essa curva é perigosa demais, muita gente ainda vai morrer aqui, ouviu o marido dizer na garupa da moto com mãos ao redor da sua cintura. Semanas depois, na mesma garupa, viu a morte do marido naquela curva na noite de natal.

Estavam casados havia 6 anos.

Encontrei com ela no meio do nada, num restaurantezinho isolado em uma cidade menor que cenário de novela. Ela tinha o olhar triste desde o primeiro sorriso de oi. Pudera.

Tinha acabado de chegar para ficar um tempo com a amiga de longa data, para mudar de ares, aquietar a alma, repensar a vida. As coisas na casa de sempre, na cidade de sempre não andavam bem.

Como é que alguém se recupera de uma perda como essa? Eu não faço a menor idéia.

Uma amiga muito querida diz que se deve lembrar do prêmio, daquilo que fica de bom quando a dor passa, daquilo que faz tudo valer a pena. Pode ser.

Conversando a gente conhece dores nesse mundo, viu. Que dores... Dores que fazem as nossas parecerem tão pequenininhas. E conhece também os prêmios.

Existem lágrimas de dores e lágrimas de prêmios. Às vezes elas se misturam...

As lágrimas dela eram desse tipo, confusas, inconformadas, doídas e cheias de prêmio.

Eu dizia que tudo iria passar. Afinal tudo passa, certo?

Menos os prêmios, esses ficam. Ficam e voltam com o tempo, sem as lágrimas, sempre que a gente quiser.

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Folhetim Vagabundo - História 2



O começo dessa história você vê aqui: http://derrubandoparedes.blogspot.com/2009/10/folhetim-vagabundo-historia-ii-capitulo.html

* Leia ouvindo isso: http://www.youtube.com/watch?v=iw7bpnNIKbk

Folhetim Vagabundo - História 2, parte 5

Tão previsível, pensou.

Quando ele entrou no saguão esbaforido, ela tirou do seio o envelope dobrado e entregou-lhe, mão estendida e sorriso de canto de boca estampado na face.

– Tive instruções de te entregar, caso você voltasse.

- Que porra é essa, Sônia? Quem te instruiu?

- Tive instruções para não te dizer...

Ele rasgou o envelope e abriu apressado o papel:

"Assustou, foi? Eu sabia que você ia pipocar, Odair. Cuzão e sem miolos como você é, sabia que ia voltar correndo para o único lugar onde te aturam e te dão colo. Às custas de quem? Do meu dinheiro, seu bastardo argentino de mierda. Como eu já estou me divertindo com isso tudo, vou te dar uma dica para ver se os seus neurônios conseguem se entender aí no ermo da sua cabeça:

O enterrado vivo suas marcas lá deixou
A grana não encontra quem viu mas não olhou."


Ele franziu a testa e pensou, pensou... Será? Estava confuso. Sônia podia ver as engrenagens girando na sua cabeça. Que dica foi essa, merda? Mania filha da puta desse velho maldito de falar em códigos.

O celular disparou o seu tango dramático e ele quase perdeu as bolas de tanto susto. O display espelhado piscava “Cosmo”.

- Caralho, Cosmo! Onde você tá? Que sumiço foi aquele no cemitério?

- Onde você está, Odair? Eu saí pelo cemitério para ver se estávamos sendo observados. Olhei tudo. Vasculhei aquela jossa inteira para ver se o velho não estava à espreita rindo da nossa cara. Nada. Sem viv’alma, como diria a mamãe. Depois voltei e você tinha sumido, cara. Foi aonde? Crise de diarréia de novo? Tô aqui esperando, tentando pensar...

- Eu vim para Itu falar com a Sonia. Ela me recebeu com mais uma maldita carta com dica do velho. Olha só: “O enterrado vivo suas marcas lá deixou, a grana não encontra quem viu mas não olhou”. Eu não entendi nada.

- Puta merda. Já te ligo.

Cosmo voltou ao caixão aberto, puxou a tampa arranhada para perto dos olhos e vasculhou cuidadosamente as marcas. No canto esquerdo inferior encontrou o que buscava. Leu a inscrição sem acreditar e discou o número de Odair.

- Alô.

- “É no chuê, chuê. É no chuê, chuá.
A picanha está na água quero ver quem vai buscar.”

- Ãh?

- O velho quer levar a gente de volta para aquela piscina, Odair.

- Puta merda, Cosmo, não pode ser. Eu nunca voltei lá depois daquela tarde.

- Eu vou e você também vai. A gente se encontra lá em uma hora. Eu não vou deixar aquele puto levar a melhor. Ele quer jogar pesado? Vamos jogar pesado. Eu pego essa herança nem que tenha que encontrar com ele no inferno, velho desgraçado.

**

Estacionaram os carros na entrada de paralelepípedos e desceram, pés pisando nas folhas espalhadas por todo o lugar. As paredes descascadas e as trepadeiras secas à luz da lua davam um ar ainda mais sinistro à casa que tinha sido o palco de todos os seus pesadelos nos últimos 15 anos.

Pularam a cerca de bambus que circundava o quintal e aos poucos sons familiares lhes alcançaram os ouvidos. “É no chuê, chuê. É no chuê, chuá. Não quero nem saber. As águas vão rolar.” Com o coração aos pulos e os olhos arregalados, se entreolharam.

Um sussurro lhes chamou a atenção e só então perceberam a figura de costas na churrasqueira, a fumaça cinza contra o escuro da noite e o cheiro de picanha argentina no ar.

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O final da história você lê aqui, amanhã: http://www.impressoesemdesalinho.blogspot.com/

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Vai

É que a vida é assim mesmo.
Não pergunta nada.
Não quer saber.
Só diz - vai.
Segue teu curso.

Que curso?
A que custo?

Vai.

Só?
Só vai.
Segue.
Só?
Vai.

Acontece que o curso não existe.
Ele é meu. Só meu.
Eu faço enquanto curso.
E quanto mais curso, mais vejo que de meu ele não tem nada.
Eu é que sou muito mais dele.
E sigo.
Porque o curso não tem volta.
Porque a vida só diz – vai.
A todo o tempo – vai.
Cada vez mais.
Só.

sábado, 10 de outubro de 2009

Folhetim Vagabundo - Piloto: Capítulo Final




Leia os capítulos anteriores começando aqui:

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Pára tudo. Isso aí é o homem que tem circulado de cueca boxer pelas minhas fantasias nos últimos dois meses? Essa coisica? Ah, pelamor. Tão interessante pelos buraquinhos do binóculo... Que merda.

Com um mal humor do inferno estampado na testa, Samantha olhou lentamente para as duas figuras ajoelhadas aos pés da cadeira onde ela estava amarrada. Aquelas mulheres, que antes lhe pareciam tão interessantes, intrigantes, sedutoras, se transformaram em meras cadelas babentas, banais, nas mãos daquele tampinha com nome de loser total. Estevão. Ora, faça-me o favor. Nunca gostara do nome Estevão. Parecia-lhe coisa de contador nerd com aquele bigode grande nojento onde os restos de comida ficam alojados indefinidamente.

Sacudiu a cabeça para espantar aquela visão repugnante até que seus olhos pousaram sobre o corpo ensangüentado, inerte, no canto do quarto. Ricardo. O mala grudento que ultimamente vinha lhe dando surtos de ica agora lhe parecia tão adorável. Pobre Ricardo. Carreira promissora, shows agendados, diziam as críticas dos folhetins populares que tinha potencial para ser a próxima revelação das rádios motel, o novo Wando, o terror das fêmeas devoradoras de chocolate. Jazia agora com a faca de cozinha entalada no peito e os membros estirados, lambuzados, na poça vermelho escuro no assoalho. Pensando bem, achou que aquela morte lhe caía bem. Dramática, passional, exagerada. Achava que a morte do ex-futuro novo Wando deveria ser mesmo assim, meio ridícula, e que aquilo seria um prato cheio para os repórteres dos tablóides de semáforo no dia seguinte.

E a sua morte? Ah, a sua morte não. Imaginava a sua morte muito diferente, um clima noir, uma coisa meio chique-sinistra, instigante. Um ritual refinado e intenso tendo como clímax o deslizar da lâmina afiada pelo punho do antebraço esquerdo, o 48º corte, o derradeiro, dilacerando veias e artérias e fazendo jorrar o sangue para fora do corpo, jatos ritmados cada vez mais fracos, bombeados pelas últimas contrações cardíacas da sua existência.

Claro que naquele cenário de fim de novela mexicana de quinta, o seu ritual intenso chique-sinistro tinha ido para a merda. Olhou para a caixinha de veludo vermelho com um pedaço de picanha dentro e não teve dúvidas de que a sua noite com sol tinha virado um furdunço de péssimo gosto, uma noite de excursão de farofeiro em busca do sol, um fracasso retumbante em matéria de situação refinada para desencarnar. E então Samantha emputeceu.

Ora, passara anos, quase uma vida em depressão, cuidadosamente desprezando a felicidade, descartando pessoas, recusando amores, planejando seu grand finale, sua partida triunfal e agora isso? Quando lera no jornal a história dos Assassinos das Mulheres Desesperadas ficara empolgadíssima. O requinte do modus operandi, o jogo de voyerismo, as sutilezas do presente, do recado no espelho (sempre quis encontrar um recado de batom no espelho do banheiro...). Aquilo lhe parecera perfeito, o plano magistral, os aliados ideais para a sua aspiração maior. Teria consigo os profissionais da coisa, o supra sumo, a nata do passar dessa para uma melhor.

Entrara no jogo, esperara ansiosa pelo momento, pela noite que finalmente lhe traria o sol, e então... Lama. Aquela lama. Um Estevão, duas vadias, o corpo do novo Wando e um pedaço de picanha já meio ressecado em um quarto lambuzado de sangue. Para completar, o dedão do pé que Bárbara havia chupado não parava de incomodá-la, coçando loucamente. Maldita micose mal curada, pensou. E então Samantha decidiu que não terminaria sua vida assim.

Deixou-se levar para a cama estudando cuidadosamente suas opções de escape. Avistou a faca, a caixa de veludo, o vibrador. Enquanto era amarrada à cabeceira, lembrou-se dos episódios dos seriados baratos de luta que havia assistido, dos movimentos ágeis, das chaves de perna, dos golpes certeiros. Recapitulou também mentalmente as lições da aula de defesa pessoal que fizera há meses com o professor colombiano de bafo terrível. Sua testa franziu ao lembrar-se do tal bafo mas logo se conteve. Precisava entrar no jogo, fingir prazer, deixá-los à vontade. Precisava estar livre para livrar-se daquele imbróglio e poder morrer como havia planejado.

Conhecia Ana, sabia do que gostava, ela seria o caminho. Quando Ana beijou-lhe a boca, correspondeu intensamente. Línguas se enroscaram e coxas se roçaram enquanto Estevão e Bárbara observavam satisfeitos. Samantha suspendeu o beijo, olhou para Ana, olhou para suas mãos amarradas e aguardou. O recado estava dado. Ana imediatamente desfez as amarras. Ela queria mais, queria suas mãos por toda a parte. Que mal haveria afinal? Samantha havia entrado no jogo, pensou.

E então a merda chegou ao ventilador. Samantha reuniu todas as suas forças, aproveitou a descarga de adrenalina que lhe preencheu os poros e fez a desvairada. Em um movimento absolutamente preciso, entuchou o vibrador GG na boca aberta de Ana até a goela, fazendo-lhe engasgar e quase sufocar antes de reencontrar de perto o seu jantar. Com um salto fantástico, alcançou a faca no peito de Ricardo e lançou-a no ar. A lâmina reluziu em sua trajetória e acabou por alojar-se na caixa craniana de Estevão, meio de lado, sangue pingando como uma tiara barata de Halloween.

Bárbara soltou um grito horripilante com a visão do marido de cabeça partida e lançou-se para cima de Samantha, fogo nos olhos, dentes cerrados.

Samantha observou cuidadosamente o avanço desengonçado de Barbara, aproveitou-se da sua vulnerabilidade causada pelo ódio arrebatador e lançou-lhe um golpe na traquéia, seguido de uma chave de braço que lhe tirou o ar. Quando o corpo em suas mãos parou de se mover, Samantha arremessou-o na parede e voltou sua atenção para Ana que começava a se recuperar do ataque inesperado.

Olharam-se. Sem expressar qualquer emoção, Samantha apanhou a pesada caixa de veludo vermelho com picanha e tudo, segurou-a com cuidado em sua mão direita e arremessou-a com toda a força na direção de Ana que ficou paralisada. Caixa e picanha voaram pelo ar como que em câmera lenta, girando, espirrando sangue pelo quarto que àquela altura faria Jason, Chuck, Krueger e a Mamba Negra morrerem de inveja. A quina da caixa atingiu em cheio a têmpora direita de Ana, seguida pela picanha que lhe chulapou a face, fazendo-a tombar lentamente, saculejante e com os olhos revirando.

Samantha olhou ao redor. Seu plano havia funcionado mas não havia tempo a perder. Retirou cuidadosamente a faca do crânio de Estevão e limpou-a no edredom. Tomou-lhe também as chaves que estavam no bolso e seguiu para o banheiro. Entrou no chuveiro deixando a água lavar-lhe o sangue e levar-lhe a alma. Enxugou-se rapidamente, vestiu o robe de seda negra com cheiro de naftalina que retirou do fundo do armário e saiu em direção à porta. Parou... Olhou ao redor, avistou o que buscava, recolheu-o e saiu, deixando a porta aberta às suas costas.

...

Respirou fundo, colocou a chave na fechadura, girou. A porta se abriu e ela finalmente avistou os aposentos que nunca achou que conheceria. À sua frente a figura da morena de cabelos negros e seios pequenos lhe observava do além. Entrou, fechou a porta, sentou-se com cuidado na poltrona branca de pés tortuosos entre a luminária e a mesa do telefone. Passou as mãos pelo tecido macio enquanto olhava para a sua própria janela. Olhando de onde estava, ninguém imaginaria o que escondia aquela janela...

Já o lugar onde se encontrava era absolutamente normal. Casa sem sal, coisa de decorador insípido e pouco ousado, um lugar pastel. Ah como havia fantasiado sobre o dia em que estaria ali... Mal sabia ela.

Chacoalhou os pensamentos e lembrou-se do que tinha de fazer. Pegou o telefone da mesinha, discou os números que não se lembrava de já haver discado. Esperou.

Love Love Love
Love Love Love
Love Love Love


Fechou os olhos por um instante. Abriu-os, embaçados. Coração na boca pela emoção do que estava por vir.

There’s nothing you can do that can’t be done
Nothing you can’t sing that can’t be sung
Nothing you can say but you can learn how to play the game
It’s easy

Retirou cuidadosamente a faca do bolso do roupão, seus olhos refletidos na lâmina enviavam-lhe um milhão de mensagens instantâneas. Uma lágrima solitária lhe escapou e molhou a face. Não se lembrava da última vez que havia chorado de emoção.

There’s nothing you can make that can be made
No one you can save that can’t be saved
Nothing you can do but you can learn how to be you in time
It’s easy

Era chegada a hora. Esperaria o refrão. Sempre gostara desse refrão e um dia chegou a acreditar no que dizia. Seria perfeito. Posicionou a lâmina sobre o punho esquerdo na altura das veias saltadas, segurou a respiração e aguardou o momento, a trilha perfeita para o 48º. O derradeiro.
E então ouviu o refrão. Um suspiro sentido. E mais nada.

All you need is love
All you need is love
All you need is love, love
Love is all you need...

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Folhetim Vagaba

Já está rolando o Folhetim Vagabundo, gente. Coloquei a chamada por aqui outro dia e agora explico: seis autores escrevendo a mesma história em formato de folhetim, um começa, o outro continua e passa a bola, uma parte por dia começando toda segunda-feira e terminando no sábado.

Já viram o naipe do que vem por aí, né?

A história piloto já começou lá no blog da Luana, impressoesemdesalinho.blogspot.com. Olhem lá. É, agora. Vão lá ver!

Depois passem pelo blog da Ju Palermo onde está a segunda parte – derrubandoparedes.blogspot.com.

Hoje a Tati Rocha continua o babado no coisarara.blogspot.com. Vixe...

Na sequência vem o Du (portudoquesinto.blogspot.com), a Má Franco (olhosrecemnascidos.blogspot.com) e yo finalizando no sábado.

Quero só ver o que vai chegar para mim....

A coisa está tomando forma e até agora está uma coisa meio misteriosa, meio noir, meio sinistra, meio filme do Lynch.

Ah, no domingo a história completa vai para o blog do projeto - http://folhetimvagabundo.blogspot.com/ e na segunda começa uma nova história, com uma ordem diferente dos autores.

Vai perder?

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Wuppertal

Quase uma aparição. Esguia, pálida, cabelo mirrado, camisola escorrida e transparente pendendo de ombros que lançavam braços inacreditáveis.

Inacreditáveis.

As linhas, a delicadeza daquelas mãos tingindo de música o ar, as notas sentidas, dilacerantes. Lindas.

Nos olhos cerrados uma emoção imensa, nos rostos, todos os porquês. Corpos inquietos e vulneráveis entre móveis escuros, o humano errante abrindo passagem, criando caminhos estreitos, abrindo clareiras. Delicadeza e opressão, fragilidade e resistência interagindo, pinçando olhos.

Angústia.

A repetição do desespero nos gestos, nos corpos debatendo-se contra barreiras intransponíveis. Cabelos vermelhos saltitantes, uma camisola no chão, um corpo na mesa. De novo, de novo. Uma vontade de espaço desesperadora. Corpos confinados. Um sorriso em meio à angústia.

O primeiro fim.

Café Müller (1978) foi assim, um soco no estômago permeado de delicadeza. Nem dança nem teatro, o humano escancarado e inquieto sob os holofotes.

E então o palco se cobriu de terra escura, luzes sobre o corpo de mulher estendido no tecido vermelho. Stravinsky tomou o teatro e os movimentos de 35 corpos materializaram a música, dando-lhe outra dimensão. Eu via as notas pelos olhos de Pina, pés jorrando terra, ar enevoado nos feixes de luz, corpos ficando suados, ficando escuros, virando bicho.

A massa se movia pulsando e vazando em movimentos iguais mas não idênticos, marcados pelas sutilezas do individual. Uma massa respirante, transpirante. O som forte e animal das expirações, o vai e vem de barrigas e peitos buscando ar.

Um vendaval.

Sagração da Primavera (1975) é uma experiência que não se explica. É dança que pode ser vista de olhos fechados e música que pode ser ouvida sem ouvir, dada a intensidade de estímulos vindos de movimentos, de impactos, de ruídos, de olhares, de grunhidos e respirações. Corpo falando com corpo, sem intermediários, sem interpretações.

Eu prendi o ar sem perceber e pedi para aquilo não acabar.

E veio o segundo fim.

Palmas, Pina. Sempre. À tua obra, atemporal vez que essencialmente humana, transformadora de corpos e mentes, inexplicavelmente sensível e genial.

Café Müller

Sagração da Primavera

domingo, 4 de outubro de 2009

Folhetim

Vem aí....



Aguardem.