sábado, 19 de dezembro de 2009

Campinas

Cidade estranha essa minha. Cidade sei lá.

As coisas funcionam assim: você investe, cria, constrói, trabalha pacas, emprega uma galera, sustenta 20 famílias com registro, 13º, cesta básica, tudo certinho, compra com nota, paga imposto, tira laudo de bombeiro, laudo de vigilância, laudo de acústica, laudo de estabilidade, atende a todas as quatrocentasenoventaetrêsmil exigências dos manuais X, Y e W, respeita a vizinhança, encerra a música às 22h, trata bem cliente, fornecedor, funcionário e quem mais aparecer, leva o negócio a sério, presta um serviço de qualidade e faz de tudo nessa vida durante anos para conseguir trabalhar em paz. Consegue?

Necas. É fiscal de todo lado te tratando feito marginal.

- Mas Ju, não faz sentido...

Pois é, não faz sentido mesmo. Lugarzinho esquisito.

Ao invés de incentivar o empreendedor, de ajudar o maluco que peitou abrir um negócio a essa altura do campeonato, os caras das canetas resolvem dificultar a vida da galera ao máximo. Ê esperteza.

Acontece que um dia o maluco que peitou abrir um negócio cansa de ser feito de idiota, tranca as portas, põe todo o mundo na rua, pára de sustentar 20 famílias, de pagar imposto, de comprar produto, de prestar serviço e se manda para a Austrália para tirar foto de canguru.

E aí? Alguém ganha alguma coisa com isso?

Só o canguru.

Tudo errado, minha gente. Tudo errado. Se eu for uma besta me corrige, mas os caras que a gente elege e paga uma grana preta todo mês não tão aí para garantir o funcionamento da sociedade, para promover o bem comum e para tentar fazer dessa nossa vidinha aglomerada uma coisa boa, digna, aceitável?

Ah, tá.

[cara de ué]

Alguma coisa deve então ter dado muito errado por aqui.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

O morcego e os Sinais

Sábado, 4 da matina, eu de pijaminha (mentira que eu não durmo de pijama...) morta de sono, entro no meu quarto e o que eu vejo? Ein? Uma coisa preta sobrevoando a minha cama, dando looping em volta do lustre. Caraca... Será que entrou um passarinho aqui durante o dia? Eita, como é que eu vou tirar o bichinho daqui? Judiação... Ponho o Luke para fora e vou devagarinho para dentro do quarto ver o ser voador, e não é que não era um passarinho, gente? ERA UM MORCEGO! Ah, faça-me o favor! Um morcego dando rasante dentro do quarto no décimo terceiro andar de um prédio sábado às 4 da manhã?

Brincou.

Não tive dúvida, fechei a porta bem fechada para não ter chance do coisinha ir passear pela casa, abri a janela e fui dormir no sofá, eu e Luke desalojados por medo do morcego enxerido e absolutamente inconveniente.

Domingo de manhã: - Pai! Tem um morcego no meu quarto, help pleeease!

E papito foi, tirou o coisa marrom esquisita do quarto e jogou pela janela. Coitado, tava tão atordoado que saiu voando meio cambaleando trupicante mundo afora.

Ôxe.

Sabe aquelas fases trash, em que tudo dá errado, uma coisa atrás da outra, a ponto de você começar a rir das coisas prá não chorar? Pois é, acontece por aqui. Fase braba. Começou em outubro e não parou mais, trauletada de todo lado, daquelas de perder o rumo, inferno astral atrasado e com três meses de duração. Ô, delícia.

Mas eu não me abalo não. Vamo que vamo. Dou uma de Polyana, vou prá balada nos dias mais punks, canto alto no carro, brinco com o Lu, com a Lalá, dou risada, faço piada, faço o que tem de ser feito.

Continue a nadar, continue a nadar...

Acontece que às vezes as coisas ficam tão surreais que até eu, que não costumo acreditar em intervenções superiores, acabo acreditando que o universo só pode estar querendo me dizer alguma coisa.

Um morcego sobrevoando o seu quarto no 13º andar deve - só pode - ser algum tipo de sinal, de mensagem criptografada nem um pouco sutil. A ver.

sábado, 12 de dezembro de 2009

Isso é São Paulo...

Ele chegou como um cara qualquer, exceto pela arma na mão.

- Olha só, todo mundo calmo por aqui. Isso é um assalto, passa já as carteiras.

Demora um certo tempo até a ficha cair, ainda mais com o cara falando calmo daquele jeito. Eu olhava para o revólver, para a cara do moço, para as pessoas na mesa e para as bolsas e celulares. Caraca, já era. O cara vai levar tudo, pensei.

Pegou o dinheiro que achou e ia levando uma carteira mas resolveu devolver, tinha documento e coisa demais ali. O ladrão estava de boa.

Foi então que apareceu o ignorante pelo meu lado esquerdo. Um mano bem mano, mochila na frente do corpo, boné, arma na mão. Foi chegando e pegando os celulares em cima da mesa. Eu via ele pegar os aparelhos e pensava em tudo o que estava ali dentro que eu iria perder, pastinha por pastinha, docs, senhas, contatos, memos, músicas, fotos, tudo para os caras trocarem por vinte mangos na primeira boca da esquina. Maldito mano. Não pensei duas vezes, na verdade não pensei vez nenhuma:

- Ai moço, não leva os celulares por favor, tá tudo aí, coisa de trabalho...

Ele olhou para mim espumando. Levantou a arma e veio para o meu lado com a coisa apontada, aquela sensação meio de câmera lenta sabe? Estranho demais. Eu só pensava que ia levar um tiro ali mesmo, na calçada do bar, por causa de uma porcaria de celular. Eu e a minha boca grande.

Ele chegou bem perto, levantou a arma e me bateu na cabeça com o cabo. Não foi forte, uma pancada só, acho que ele quis mais assustar do que machucar. Sorte. Aquele cara, bolado do jeito que estava, poderia ter feito qualquer coisa. Na verdade para ele me dar um tiro ou me bater na cabeça acho que daria no mesmo. O cara tava maluco.

- Calma moço, não bate nela. Disse o Biel do meu lado (obrigada querido!), o que fez ele sair de perto, guardar os celulares na mochila e ir correndo para a moto.

O outro cara fez a rapa nas outras mesas e saiu andando de boa, com direito a frase de efeito:
- Desculpa aí meu povo, mas vocês têm o que fazer e nós não. Isso é São Paulo.

Depois que eles saíram a gente ficou ali, parado, se olhando meio sem saber o que dizer ou fazer. Caraca, como a minha mão tremia...

É, minha gente, isso é São Paulo e todo o resto desse país à beira de um ataque de nervos. Eu só quero ver onde isso vai parar, acontece na Roosevelt, na rua, no buteco perto de casa. Não existe mais lugar seguro, nenhum, e depois de passar por uma coisa assim a gente tem a noção real da nossa completa vulnerabilidade.

Não adianta, a encrenca pode rolar em qualquer situação, a qualquer hora, onde quer que seja, e ficar trancado em casa não é vida, então o jeito é curtir e torcer para não estar no lugar errado na hora errada. Agora, cá entre nós, deixa levar o que quiser. Deixa, passa. Tentar argumentar com o ladrão chapado não é uma opção inteligente e promovedora de sobrevivência. A anta aqui tentou e quase não sobrou para contra a história.

Talvez por essa sensação de não saber o que vem por aí a gente tenha se jogado tanto na balada depois. Ou talvez tenha sido a vodka com energético misturada com tequila, mesmo... Vai saber. Fato é que a noite de aventuras acabou em uma das melhores baladas dos últimos tempos. Exorcizamos. Duro foi acordar com ressaquinha misturada com dor de galo na cabeça. Eita.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Clarice

- Eu traduzo tudo para o francês, disse me mostrando o catálogo do Pão de Açúcar na sua mão.

Uma senhorinha conversadeira de fila.... Adoro. Elas falam sobre tudo, são ótimas.

- Jura? A senhora fala francês fluente? Morou na França?

- Não, Canadá.

[Cara de hum balançando a cabeça]

- Como não tenho com quem falar, traduzo as coisas para não esquecer. Você fala?

- Francês? Infelizmente não, mas acho lindo demais.

Acho mesmo. Um dia ainda vou falar francês...

- Ah, que pena... Minha filha, que calor. Eu vim andando lá do centro e agora cansei, viu. Tô suando aqui. O duro de andar em Campinas é que não tem ninguém para conversar pelo caminho. Ninguém. As pessoas na rua são poucas e não gostam de falar assim, com os estranhos.

- É difícil conhecer gente por aqui, né?

- Difícil demais, minha filha. Campineiro é muito arisco. Ah se fosse em Serra Negra. Em Serra Negra tem muita gente na rua e todo mundo gosta de conversar. Achei até gente que falava francês. Outra coisa, outra coisa.

- É verdade, menos pressa e menos desconfiança né?

- Muito menos. Mas não é só isso, parece que por aqui ninguém gosta de conhecer gente.


É, o campineiro típico é um bichinho difícil de acessar... Ponto para a senhorinha.

Ela estava tão feliz papeando ali comigo que eu fiquei até de bode quando chegou a vez dela na fila do café. Tadinha, deve ser sozinha, viver o dia todo sem ninguém em um apartamento vazio com toalhinhas de crochê no centro da cidade. Eu queria mesmo era ficar ali falando com ela. Ela tinha tantas histórias, histórias do Canadá, de Serra Negra. Ela sentia falta de gente.

Eu estava ali pirando e sofrendo na da senhorinha quando chegou o seu exmo. senhorzinho “Clarice, pára de falar e faz logo o pedido. Que coisa.” , disse meio que se desculpando do falatório para o meu lado. Eu sorri um riso de tudo bem e pensei que a Clarice não vivia sozinha, afinal, mas provavelmente vivia só, entre catálogos de supermercado que traduz para o francês para não esquecer, por não ter com quem falar. Triste né?

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

As Bolsas Térmicas

Ontem chegaram lá no bar umas bolsas térmicas de presente de um fornecedor que vão ser lindamente estreadas no meu reveillon em Salvador. Ô delícia. Mas isso é outra história. Eu quero mesmo é falar do cheiro delas.

É, do cheiro. Que-cheiro-bom. Na hora em que elas chegaram na sala, o ambiente ficou impregnado com aquele cheiro de escola, de jardim, de ginásio na época em que ginásio era ginásio (nem sei como chama agora), um cheiro de plástico, meio de livro novo que a gente ficava encapando na mesa da cozinha com a mãe nas férias de janeiro, meio da lancheira que ia cheia de Toddynho, bisnaguinha e bananada. O melhor cheiro de plástico do mundo.

Uma delícia a sensação, aquela coisa boa de sentir uma época boa que já foi, sabe? Um gostinho, um lampejo de uma fase tão gostosa e fácil e simples, cheia de alegrias e pequenos prazeres, de brincadeiras e músicas do Balão Mágico, jogos e paquerinhas de pegar na mão.

Flashback total. Tudo por causa de um pedaço de plástico que já já vai estar cheio de cerveja, batida de coco e Smirnoff Ice. Quase tão bom quanto Toddynho, bisnaguinha e bananada....

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Vem Tia Bú

Ela é incrível. Tão diferente a cada vez que a gente se vê...

Ela pede colo, me conta da escola, do Biel, me faz comidinha de barra de cereal, gargalha gostoso e sai numa corrida de passicos desengonçados e gritinhos de alegria. Eu desenho nenê, peixe, cachorro para ela, faço ela girar e jogo nas almofadas uma, duas, duzentas vezes. A gente corre prá lá, corre prá cá, importuna o Luke, imita o Michael Jackson, ela fala dez, cem palavras novas enquanto cresce cachinhos quase loiros e ri para mim um risinho maroto meio de lado, irresistível.

Ela adora a lua, ou melhor, a ula.

Ela já sabe de tudo.

Não existe mau humor ou tristeza que resistam a essa mocinha piquita de olhos enormes cheios de docura e mãozinha gorducha com cinco minhoquinhas para cima dizendo vem tia Bú...

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Folhetim Vagabundo - História 8, Capítulo 4




Essa história começa aqui: http://derrubandoparedes.blogspot.com/2009/11/folhetim-vagabundo-historia-8-capitulo.html

***

Sempre tive uma vontade estranha de acabar os meus dias mergulhando no ar em direção ao por do sol, uma coisa bem estilo Thelma & Louise, carro voando, sorrisão na cara, linda. Mas e coragem?

Pois é, agora, mundo acabando, xeque-mate geral, esse me pareceu o jeito perfeito de encerrar os trabalhos por aqui. Eu só precisaria preparar o carro, dar um jeito na cara, nas vestes, no todo, encontrar um desfiladeiro de frente para o sol avermelhado e... Voar. Esse seria o meu ritual, o meu grand finale. Ah como seria lindo... Não fosse a impossibilidade completa de andar meio metro com o carro pela rua. Aparentemente a ficha da galera havia caído de vez e o povo resolveu pirar, fazer o que desse vontade e mandar as regras sociais e as normas de trânsito às favas.

É, o meu final poético mergulhando para o por do sol não ia rolar. Resignada, desci do carro e saí andando pelas ruas em direção à minha casa, olhos, nariz e ouvidos atentos como nunca, aguçados pelo caos ao meu redor e pela sensação de presenciar tudo pela última vez. Gritos, sirenes, vozes em oração, choros, motores de avião e o céu avermelhado me invadiam por todos os lados e me preenchiam o peito e eu, inexplicavelmente, estava absolutamente calma.
Como é estranha e poderosa a aceitação do fim.

Andei e andei e andei, vi as cores inéditas sob o céu carmim, olhei em olhos como nunca havia feito, chutei as poças, pisei descalça na grama, tomei sorvete sujando o rosto e a roupa, cantei alto pela rua, cocei a barriga do cachorro sarnento da esquina e gargalhei feito doida, braços abertos, cabeça baixa, girando e girando e girando até a tonteira não me deixar mais de pé, e então à minha frente surgiu a minha casa.

Girei a chave e entrei dando uma última olhada no resto de mundo às minhas costas. Um fiapo quase arrebentado de mundo que logo seria poeira cósmica ou sei lá o quê, mas isso também não faria a menor diferença. O mundo deixaria de ser mundo e só. Ponto final.

Fui deixando as roupas pelo caminho em direção ao banheiro, enchi a banheira branca, acendi as velas ao redor, escolhi cuidadosamente o CD e apertei o play.

[Ouça a partir daqui: http://www.youtube.com/watch?v=qOVwokQnV4M ]

A melodia começou a soar enquanto os meus pés, pernas, nádegas, o meu corpo todo submergia e era envolvido pela água morna levemente perfumada. A penumbra do banheiro seria o cenário perfeito, Bach a trilha mais linda que eu poderia ter e eu juro que nunca havia sentido tanta paz. Mergulhei a cabeça até colocar os ouvidos dentro da água, fechando os olhos e deixando as notas ressoarem filtradas pelo líquido, distantes, etéreas, massageando o peito e me carregando para um estado de quase inconsciência quando de repente... Péééééé. A campainha.


Quem seria àquela hora de fim do mundo?

***

O fim, aqui: www.olhosrecemnascidos.blogspot.com

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Folhetim Vagabundo - História 7, Capítulo 3



O início da história você encontra aqui: http://impressoesemdesalinho.blogspot.com/2009/11/folhetim-vagabundo-historia-7-capitulo.html

***

Ana Clara sentia o coração batendo tão forte em seu peito que parecia que ele iria escapar-lhe pela boca, o ritmo acelerado deixando-lhe completamente sem chão. Ele sente saudade, sente saudade... Ele sente a minha falta. Não se lembrava de palavras doces como essas sendo jamais pronunciadas pelos lábios de seu pai. Ao menos não em relação a ela. Sempre Mariana. Mas agora Mariana não estava lá, eram apenas os dois, pai e filha, como no início, e ele sentia a sua falta, apesar do telefone, apesar dos incômodos, apesar de todas as suas faltas e incompetências, apesar de....

Ana Clara sentiu um calafrio percorrer-lhe a espinha.

O pai suspirou profundamente, fechou os olhos e limpou a garganta.

- Eu sempre segui suas pegadas na areia da praia. Seguia-as de longe, pelas janelas do escritório, uma a uma. Sua alegria ao brincar só, chutando ondas e deixando suas marcas pelo caminho me alegrava os dias e me lembrava de como eu também costumava deixar minhas pequenas pegadas na areia fofa e olhar para trás, orgulhoso de ter transformado aquilo tudo.

Ana Clara nunca soube que era observada. Sempre fizera de tudo para conseguir a atenção do pai, sem imaginar que a tinha sem esforço a cada vez que corria despreocupada, vento no rosto, pela praia. De olhos fechados e com a sensação da brisa fresca tocando-lhe a pele, ouviu o pai continuar.

- Ela precisa saber que sempre foi a minha inspiração, Mariana. Precisa saber que a distância entre nós nunca foi intencional, que eu simplesmente não sabia como vencê-la. Eu era um homem muito ocupado, contido, as barreiras pareciam para mim intransponíveis e justamente por isso eu entendo, hoje, aquele beijo.

Ana abriu os olhos e sentiu o coração subir-lhe à garganta. Sabia que era disso que se tratava, teriam ali, no leito de morte do pai, a conversa que nunca tiveram a coragem de iniciar ao longo da vida.

Lembrava-se perfeitamente do dia em que entrara no escritório do pai ao entardecer e encontrara-o dormindo estirado no sofá de couro marrom. Aproximou-se cuidadosamente, ajoelhou-se ao seu lado e sentiu uma vontade enorme de tocar-lhe a face. A necessidade de contato chegava a doer. Ana Clara inclinou-se lentamente para beijar-lhe a fronte e, sem perceber claramente o que fazia, tomou-lhe os lábios em um beijo calmo, sentido, de alma. O pai chegou a retribuir-lhe o beijo, acariciando-lhe os cabelos, até que abriu os olhos, reconheceu-a surpreso e, indignado, afastou-a definitivamente. Ironicamente naquele momento ela só conseguia pensar se seu pai percebera que ela havia fumado, ou se o chiclete mentolado que sempre mascava antes de entrar em casa havia dado conta do recado.

Mal sabia ela da repercussão que aquele simples beijo teria e do tamanho do abismo que criaria entre eles. Mal sabia ela, também, que aquele seria o seu único beijo, que os únicos lábios que sentiria contra os seus ao longo da vida seriam sempre os de seu inatingível pai.

Jamais tocaram no assunto. Jamais. Aquele fim de tarde ficou escondido em suas memórias, entalado em suas gargantas, disfarçado entre os móveis da casa, suspenso sobre a mesa de jantar.

E então mãos trêmulas tomaram as suas, olhos úmidos de reconhecimento miraram-lhe fundo na alma e os mesmos lábios, agora ressecados e murchos, moveram-se para dizer-lhe algo, sendo porém interrompidos pelo bipe estridente dos monitores da UTI. Olhos nos olhos, mãos trêmulas ficaram pesadas, lábios se contorceram e uma lágrima de despedida escorreu pela face pálida e enrugada do grande doutor, ao mesmo tempo em que a porta do quarto se abria para deixar entrar duas enfermeiras apressadas e uma assustada Mariana.

***

Continua aqui: http://olhosrecemnascidos.blogspot.com/

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Café com Queijo

Aproveitando o gancho do post anterior, Café com Queijo é uma peça que certamente já espalhou muita moedinha por aí.

O trabalho do Lume é lindo, resultado de uma viagem feita pelo norte do país em que eles conheceram muita gente, viram de tudo, comeram de tudo (até café com queijo...) e criaram um espetáculo de retalhos, uma colagem das figuras pelo caminho, uma representação super sensível daqueles homens e mulheres e suas histórias, vozes, cantos.

O gestual impressiona. A face, a curvatura da coluna, os movimentos da mão, o timbre, o sotaque, os dedos do pé, tudo muda a cada pessoa ali apresentada, a cada pessoa que entra no foco e fala com você olhando no olho, cantando, contando causo.

Sentados em círculo, bebendo da cachaça distribuída e cantando junto, nós, o público, escutamos e interagimos com as figuras trazidas de longe por aqueles atores geniais, olhares espalhados pela sala se cruzam, se reconhecem e compartilham seus próprios cantos e causos. A colcha de retalhos colorida ao redor, envolve e delimita, agrega e ilumina.

Dez anos depois de sua criação, Café com Queijo tem um frescor e uma verdade impressionantes. Aquelas figuras estão ali conosco, vivas, passe o tempo que for. O segredo? Para mim é um trabalho porreta de ator, o exercício diário da busca dos porquês e a lembrança de homens e mulheres que provavelmente já se foram, mas que a cada vez que se acendem as luzes rodeadas por aquela colcha de retalhos, voltam a existir, a contar seus causos e a inspirarem gente, enquanto a peça acontecer, por onde Café com Queijo passar.

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Moedinha

- E aí, Ju, em cartaz com alguma peça?

- Estou sim, Ro. Estou fazendo Désir.

- Ah, qual é essa? A da moedinha?

- Da moedinha??? Que moedinha?

Não lembrava de peça minha com moedinha nenhuma....

- Aquela em que vocês jogavam moedinhas de chocolate...

- Ah..... Bits. Nossa mulher, de onde você desenterrou isso. Eu fiz essa peça em 2004!

- Pois é, eu nunca esqueço e a Pam também não. Ela amou. Mesmo. Gostou tanto que guarda a moedinha até hoje, acredita?

Uôu.

- Tá brincando?

- Tô nada. A moedinha tá lá na caixinha de lembranças boas dela, junto com outras coisas que marcaram.

- Nossa menina, não sabia. Há quanto tempo que eu não vejo a Pam. Manda um beijão pra ela, saudade. Fala para ela cuidar bem daquela moedinha, foi mesmo uma época boa...

Eu sei que sou uma patife e tals mas eu tive que respirar fundo para não sair de lá de olho vermelho. Mexeu comigo aquilo. Como as coisas que a gente faz continuam agindo e reverberando nas vidas por aí... Aquela peça tosquinha e divertida, um monte de cenas de musicais da Broadway que a gente gostava, unidas por uns textinhos explicativos, umas micagens e muito carão fez a diferença para alguém além de nós mesmos. A cena da moedinha era Money, Money, feita com uma “coreô” gozação total. No fim a gente jogava moedinhas de chocolate para o público, uma bobeira, um agradinho... Quando é que eu ia imaginar que alguém ia guardar aquilo como uma lembrança especial?

Fazendo arte a gente espalha moedinhas por aí sem perceber...

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Folhetim Vagabundo - História 6



Capítulo 1

Corria loucamente.

O baço doía, os peitos siliconados sacudiam e se embolavam dentro do sutiã pontudo, o ar que entrava em seu corpo com um chiado rouco não lhe era mais suficiente mas corria mesmo assim. Precisava correr.

Enquanto seus pés esmagavam folhas secas e melecas da floresta, revivia os acontecimentos da noite em sua cabeça loira platinada. Como foi mesmo que tudo chegara àquele ponto? A espiada pelo buraco da fechadura, o beijo, os barulhos ininteligíveis, o cheiro forte de charutos e leite de rosas...

Olhou para trás e a visão dos três homens vestidos de palhaço lhe perseguindo era realmente surreal. Aquilo estava parecendo um filme trash das madrugadas da Band, exceto pelo fato de que ninguém seria tão retardado a ponto de imaginar e escrever uma história daquelas.

Continuava a correr enquanto pensava na sorte que tinha por estarem usando sapatos de palhaço. Isso lhes atrasava um pouco e lhe permitia manter a dianteira, mas não poderia correr para sempre.

A luz da lua e os ruídos da mata tornavam a cena ainda mais dramática. O esforço extremo lhe consumia e estava a ponto de desistir quando avistou ao longe uma pequena cabana com as luzes acesas, e então correu ainda mais.

Precisava desesperadamente de ajuda.

***

Não perca a fantástica continuação dessa história amanhã, aqui: http://www.impressoesemdesalinho.blogspot.com/

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Folhetim Vagabundo - História 5, Capítulo 2


A história começa aqui: http://olhosrecemnascidos.blogspot.com/

***

Ele.

Sentiu um latejar nas têmporas e o sangue ferver-lhe as veias. Caraca. Isso nunca havia lhe acontecido antes. Os rostos que surgiam de seus traços eram sempre desconhecidos, conjuntos de olhos, boca, nariz e pêlos que não lhe diziam nada. Até hoje. Hoje, ao olhar aquele todo, o conjunto de traços repentinamente passou a ter voz, cheiro, lugar, som.

Ele.

Poderia encerrar o caso ali, naquela sala, naquele instante. Bastaria anotar no canto da folha um endereço. Sim, isso seria o certo a fazer, o óbvio, mas estranhamente o óbvio não lhe agradava. A figura tranqüila à sua frente, aqueles olhos rabiscados no papel, o frio na boca do estômago. Alguma coisa não se encaixava naquele cenário. Além disso, a descarga de adrenalina que lhe invadiu os poros era absolutamente deliciosa e o óbvio a fazer certamente poria fim a tudo, trazendo de volta o tédio que lhe permeava os dias.

Balançou a cabeça, suspirou fundo e seus olhos se cruzaram com os da mulher que acendia outro cigarro. Familiar. A figura lhe era mesmo familiar, já vira aqueles olhos, aquela boca, aquelas formas. Ela lhe chamara atenção anteriormente, apenas não conseguia encaixá-la no ambiente a que pertencia. Observava os detalhes, seus olhos treinados de desenhista esquadrinhavam a mulher à sua frente em busca de pistas e então ela viu a pequena estrela tatuada no dorso da mão que segurava o isqueiro. Lembranças daquela mesma estrela lhe levaram ao seu elevador, mão tatuada apertando o botão do andar acima do seu.

Ela.

Agora lembrava-se bem. Haviam se cruzado duas ou três vezes entre entradas e saídas do prédio de Helena. Mas não poderia ser, ela e ele então se conheciam. E o estupro denunciado? Havia certamente mais a saber do que a mulher à sua frente escolhera dizer à polícia e Helena pretendia descobrir.

***

Continua aqui: http://www.impressoesemdesalinho.blogspot.com/

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Folhetim Vagabundo - História 4, Capítulo 3




Essa história começa aqui: http://portudoquesinto.blogspot.com/2009/10/folhetim-vagabundo-historia-4-capitulo.html

***

Tudo começou três anos, dois meses e vinte e um dias antes, naquele fatídico 29 de setembro de 2009. A idéia aparentemente inofensiva, a proposta irrecusável, chegou por e-mail para os escolhidos que a acataram sem terem a menor noção de onde estavam se metendo, do caminho que trilhariam a partir dali.

A aceitação da proposta havia sido o divisor de águas nas vidas daquelas seis pessoas, o ponto de virada, o início de uma jornada fantástica jamais imaginada.

A proposta? A criação de um folhetim semanal escrito a 12 mãos, um autor por dia continuando a história escrita até então. Nascia naquela data o revolucionário Folhetim Vagamundo.

Acontece que o projeto alcançou instantaneamente uma popularidade nunca antes vista. A genialidade das histórias, o formato atípico, os desvios de pensamento, as mentes brilhantemente deturpadas, os temas esdrúxulos, os elementos recorrentes e a forma de inteiração entre os autores arrebataram e arrebanharam leitores em todo o globo. Os capítulos diários passaram a ser aguardados ansiosamente pela gigantesca e crescente legião de seguidores fiéis. Revistas, documentários, encartes jornalísticos, filmes hollywoodianos, grupos de discussão, páginas na Wikipedia, tablóides, programas de TV e uma infinidade de formatos de mídia dedicaram-se a cobrir incansavelmente o projeto. Os textos, escritos originalmente em português-brasileiro, passaram a ser traduzidos para milhares de idiomas e dialetos e lidos em todos os confins do planeta.

Diz-se inclusive que a ânsia generalizada pela leitura do famoso folhetim levou a Internet a lugares até então desprovidos de conexão. Sim, o folhetim espalhou o progresso, ampliou mentes, quebrou paradigmas e transformou os 6 escritores em ídolos mundiais, mais conhecidos do que Madonna, Michael Jackson, o Papa, a mulher melancia, o Obama e a Barbie juntos. As mentes brilhantes e as personalidades cativantes, aliados aos dotes físicos inquestionáveis dos autores, transformaram-nos nas celebridades mais cultuadas do universo, verdadeiros líderes popintelectuais com direito a bonequinhos articulados, álbuns de figurinhas e fã clubes enlouquecidos.

Para não se entediarem com o folhetim, os 6 magnânimos decidiram ao longo do tempo desafiarem-se, sacaneando-se mutuamente, provocando-se e colocando-se em situações aparentemente insolúveis. Assim, os capítulos passaram a contar com finais absolutamente inesperados, com a conjunção de objetos sem nexo como frutas estragadas, partes de animais, líquidos com lactobacilos vivos e instrumentos inusitados. A cereja do sundae passou a ser, então, a sinuca de bico criada e a expectativa pela saída para o imbróglio a ser proposta pelo próximo participante.

Nos três anos que se seguiram o projeto continuou a todo o vapor, aproveitou o potencial inesgotável daquelas mentes brilhantes e extrapolou as fronteiras da escrita, criando obras fantásticas variadas como sinfonias, esculturas, castelos de areia, musicais da Broadway, quadros de pontilismo, cartoons, coreografias, peças de teatro, ballets de repertório e ainda desvendando a maioria das grandes questões não resolvidas da humanidade. Até onde se sabe, mesmo os críticos mais exigentes passaram a dividir a história da arte em antes (Era Clueless) e depois do folhetim (Era Vagamúndica).

Ocorre que em 2012 o medo do fim do mundo se espalhou pelo planeta. Tudo culpa de uma profecia do avançadíssimo calendário Maia e da história número 3 do Folhetim, aquela clássica do sonho de Deus. Pois é, o bicho pegou e a humanidade pirou na batatinha mesmo. Pânico generalizado. Caos. De acordo com a profecia a data fatídica seria 21 de dezembro de 2012. O que lhes restava como último recurso? Pedir arrego às 6 mentes folhetinescas, aos líderes intelectuais, aos únicos que poderiam com o seu brilhantismo reinventar a roda, desvendar o mistério e, na pior das hipóteses, deixar como legado uma última obra de arte tão perfeita e bela que seria tida pelo porvir como o emblema de uma raça extinta avançadíssima.

O que nos leva de volta às 11:01 daquela manhã de 20/12/2012...


***

Continua aqui: http://impressoesemdesalinho.blogspot.com/

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Folhetim Vagabundo - História 3 - O Imbróglio no Meio de Tudo


***
Chegou em casa agoniado. Não sabia o que fazer com aquilo tudo dentro do peito, Carlos Frederico, Carlos frederico, Carlos Frederico.... Car-los-Fre-de-ri-co, Maura Rúbia, malditas alianças e o pedido. Argh.

Abriu a porta do quarto e esgueirou-se por debaixo das cobertas até aconchegar-se no colo ossudo da mãe. Não disse nada, não precisou. Ela sempre o compreendera, sempre soube o que pensava, o que sentia, e naquele dia não seria diferente. Mãos alisaram cabelos desgrenhados e Matheus Ricardo adormeceu um sono nervoso sob os olhos atentos da mãe.

E veio o sonho. Deus entediado, o anjo fofo taurino, o fim do mundo por vir, redemoinhos de substância amorfa, o buraco negro. Quando avistou os olhos da pessoa que chegou chegando, acordou assustado, a testa encharcada e outras partes também. Sua mãe sorriu um riso terno: - Matheus Ricardo, Matheus Ricardo – ela amava o som do nome que havia escolhido para o filho, nunca dizia só Matheus ou só Ricardo, os dois nomes juntos tinham a sonoridade perfeita - molhando a cama de novo? Ô meu menino...

Seguindo as dicas de seu terapeuta de anos, Matheus Ricardo anotou os detalhes do sonho, descreveu as nuvens, as conversas. Aquilo havia sido muito intenso e certamente escondia uma lição, uma dica, um sinal. Dona Jacintha, limpando os líquidos da cama já cheia de manchas de tons amarelados diversos, pensava em como solucionar a sinuca de bico em que o filho se encontrava.

Acompanhou por toda a sua vida as angústias de sua cria. Matheus Ricardo falava durante o sono e entregava-lhe, sem saber, todos os acontecimentos, medos e sensações que experimentava, dando-lhe informações suficientes para intervir na vida do filho como bem entendesse.

Quando Maura Rúbia apareceu, achou que os problemas amorosos de seu pimpolho estivessem finalmente solucionados. Ela era perfeita, pensou. O nome duplo de sonoridade perfeita, o gosto pelo jogo de tranca, pelas conversas sobre testes de revistas femininas, a personalidade forte, racional, decidida... O gênero. Finalmente Matheus Ricardo deixaria daquela besteira de brincar de gogo boy com os amigos de peito depilado, namoraria uma fêmea de boa família e lhe daria um neto.

Acontece que nos últimos tempos a relação não estava mais como antes. A química, a afinidade, as conversas sobre os testes de revistas, os jogos de tranca, nada mais lhe dava o prazer de antigamente. Seis anos haviam se passado e Jacintha sentia que sua relação com Maura Rúbia havia se esgotado, e que assumirem um compromisso àquela altura seria um erro terrível. Para completar, Matheus Ricardo voltara a ter amigos depilados, de cabelos esquisitos, lenços de estampa xadrez, ipods com músicas eletrônicas e cds de musicais norte americanos. E então Carlos Frederico apareceu. Desde que o jovem alto, estilo Gianecchini, surgira na vida de seu filho, os dois não se desgrudaram mais. Matheus Ricardo voltou a assobiar canções do ABBA, a treinar seus passos de gogo boy, voltou a sorrir e à noite só se ouvia o nome de Carlos Frederico povoando seus sonhos. Aquele seria mesmo o seu caminho e ela, Jacintha, como uma boa mãe, teria de entender.

Os conflitos do filho, porém, permaneciam. Ele achava que tinha uma dívida para com a sociedade, para com Maura Rúbia e insistia na realização do noivado. Comprara as alianças no dia anterior e chegara dizendo que faria o certo. À noite se encontraria com Carlos Frederico para dar-lhe a notícia e seguiria o seu destino ao lado da mulher que seria a nora perfeita para sua mãe.

A noite com Carlos Frederico começara perfeita. Falaram sobre tudo, boates, os lançamentos da Broadway, o timbre da Barbra Streisand, a SPFW, as tendências em cortes de cabelo. A conversa fluía fácil, olhares se encontravam, mãos se tocavam, a companhia era boa, o interesse genuíno. Uma coisa levou a outra, o vinho alterou os estados e a noite acabou com os dois exauridos e satisfeitos na horizontal. No auge do aconchego, Matheus Ricardo deu a bombástica notícia a Carlos Frederico de que iria se casar com Maura Rúbia e de que já havia até comprado as alianças.

Indignadíssimo e com o coração ferido, Carlos Frederico fez a louca e saiu desembestado pela rua, aos prantos, echarpe esvoaçando às suas costas. Matheus Ricardo na janela acenava, pedia perdão e limpava o nariz nas cortinas de voal. Do outro lado da rua Maura Rúbia observava imóvel a interação.

Sem esboçar qualquer reação, pegou o celular e apertou a discagem rápida número 2. Esperou.

- Alô. Maura Rúbia?

- Que cena bichesca foi essa agora, Matheus Ricardo? Olha eu aqui do outro lado da rua. Eu vou ligar para a sua mãe.

Desligou e apertou a discagem rápida número 1.

Sem reação, Matheus Ricardo fechou as cortinas, encolheu-se em posição fetal e esperou a exaustão trazer-lhe o sono. No quarto ao lado, enquanto ouvia os desaforos da mulher que seria sua nora, Jacintha tomou uma importante decisão.

Os sinais do sonho do filho sobre o Todo Poderoso, o tédio divino e o fim do mundo vieram apenas dar-lhe força para que tomasse as atitudes que sabia ter de tomar. A felicidade de seu filho guiaria seus passos.

Deus Todo Poderoso, por seu turno, teve no sonho do filho de Jacintha os sinais de que precisava para sair da sinuca de bico em que Ele próprio, o Magnânimo, se encontrava. Sabia agora o que teria de acontecer e gostava do que estava por vir. Gostava muito da idéia. Novos ares, pensou, ares de inexistência lhe fariam bem.

Preocupava-lhe apenas a questão não resolvida da pessoa que chegaria chegando...

***

Continua aqui: http://impressoesemdesalinho.blogspot.com/

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Vale dos Girassóis

A gente acordou cedo com a luz do dia se esgueirando pelos furinhos da barraca e com os barulhos de mato, levantou acampamento e se mandou pra trilha.

Que trilha...

O começo foi só descida, mas uma descida daquelas que carro não encara, sabe? Daquelas que não acabam mais e que fazem a gente querer chorar só de pensar na volta?

Pois é. Caímos bonitas no conversê de um mineirinho. “Ah, são uns 7km de caminhada ao todo, ida e volta. Logo ali. Vale a pena.” Olhei para a Tati , ela olhou para mim e pensamos - sussa, 7km a gente tira de letra. Somos os caras da trilha. Vamo que vamo.

O belezinha só esqueceu de dizer que o logo ali tinha uma inclinação de uns 70 graus. Tomamos, lógico. NUNCA confie nas indicações de um mineiro. NUNCA.

OK, bora. Anda que anda que anda comendo pó até que chegamos à cachoeira.

A água forte e gelada na pele quente, nas costas doídas, é uma das melhores coisas que se pode sentir quando se quer parar de pensar. Ficamos um tempão por lá, escalando pedra, falando da vida, deixando a água lavar, levar.

Tudo passa, certo? Certo.

Bora.

Bora que a fome estava grande e o caminho pela frente era longo e íngreme.

Mais umas indicações mineiras daquelas e uma subida que não acabava nunca e a gente chegou no melhor lugar do mundo naquele momento, o restaurantezinho chamado Vale dos Girassóis.

É assim: uma casinha de desenho daquelas quadradinhas, uma porta, duas janelas, tijolo à vista ao pé dos morros, antes do vale, feijão plantado ao redor, uma horta com verduras, legumes e flores, Chico Buarque no volume certo, suco de maçã fresquinho e duas pessoas queridíssimas.

A comida é tirada da terra na horinha de comer. Verduras que eu nem conhecia saíram direto do chão avermelhado para o meu prato azul, o ovo é caipira, as flores temperadas colorem o verde e há quem diga que são afrodisíacas. Há quem diga... Eu não estava em um dia para conferir mas quem sabe... Não duvido.

O papo bom, fácil, divertido fez a gente ficar, ficar. Quando o sol já estava baixando fomos embora de barriga cheia, alma lavada, cabeça tranqüila, e a subida da volta nem fez tanto estrago quanto a gente tinha imaginado. Umas panturrilhas doídas e só.

O Vale dos Girassóis é desses lugares especiais para se voltar de quando em quando. Refúgio mesmo, botão de reset. Sempre que der vou aparecer por lá para recarregar a bateria, acalmar o peito e quem sabe dia desses comprovar aquela história das flores afrodisíacas...

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Os Prêmios

Essa curva é perigosa demais, muita gente ainda vai morrer aqui, ouviu o marido dizer na garupa da moto com mãos ao redor da sua cintura. Semanas depois, na mesma garupa, viu a morte do marido naquela curva na noite de natal.

Estavam casados havia 6 anos.

Encontrei com ela no meio do nada, num restaurantezinho isolado em uma cidade menor que cenário de novela. Ela tinha o olhar triste desde o primeiro sorriso de oi. Pudera.

Tinha acabado de chegar para ficar um tempo com a amiga de longa data, para mudar de ares, aquietar a alma, repensar a vida. As coisas na casa de sempre, na cidade de sempre não andavam bem.

Como é que alguém se recupera de uma perda como essa? Eu não faço a menor idéia.

Uma amiga muito querida diz que se deve lembrar do prêmio, daquilo que fica de bom quando a dor passa, daquilo que faz tudo valer a pena. Pode ser.

Conversando a gente conhece dores nesse mundo, viu. Que dores... Dores que fazem as nossas parecerem tão pequenininhas. E conhece também os prêmios.

Existem lágrimas de dores e lágrimas de prêmios. Às vezes elas se misturam...

As lágrimas dela eram desse tipo, confusas, inconformadas, doídas e cheias de prêmio.

Eu dizia que tudo iria passar. Afinal tudo passa, certo?

Menos os prêmios, esses ficam. Ficam e voltam com o tempo, sem as lágrimas, sempre que a gente quiser.

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Folhetim Vagabundo - História 2



O começo dessa história você vê aqui: http://derrubandoparedes.blogspot.com/2009/10/folhetim-vagabundo-historia-ii-capitulo.html

* Leia ouvindo isso: http://www.youtube.com/watch?v=iw7bpnNIKbk

Folhetim Vagabundo - História 2, parte 5

Tão previsível, pensou.

Quando ele entrou no saguão esbaforido, ela tirou do seio o envelope dobrado e entregou-lhe, mão estendida e sorriso de canto de boca estampado na face.

– Tive instruções de te entregar, caso você voltasse.

- Que porra é essa, Sônia? Quem te instruiu?

- Tive instruções para não te dizer...

Ele rasgou o envelope e abriu apressado o papel:

"Assustou, foi? Eu sabia que você ia pipocar, Odair. Cuzão e sem miolos como você é, sabia que ia voltar correndo para o único lugar onde te aturam e te dão colo. Às custas de quem? Do meu dinheiro, seu bastardo argentino de mierda. Como eu já estou me divertindo com isso tudo, vou te dar uma dica para ver se os seus neurônios conseguem se entender aí no ermo da sua cabeça:

O enterrado vivo suas marcas lá deixou
A grana não encontra quem viu mas não olhou."


Ele franziu a testa e pensou, pensou... Será? Estava confuso. Sônia podia ver as engrenagens girando na sua cabeça. Que dica foi essa, merda? Mania filha da puta desse velho maldito de falar em códigos.

O celular disparou o seu tango dramático e ele quase perdeu as bolas de tanto susto. O display espelhado piscava “Cosmo”.

- Caralho, Cosmo! Onde você tá? Que sumiço foi aquele no cemitério?

- Onde você está, Odair? Eu saí pelo cemitério para ver se estávamos sendo observados. Olhei tudo. Vasculhei aquela jossa inteira para ver se o velho não estava à espreita rindo da nossa cara. Nada. Sem viv’alma, como diria a mamãe. Depois voltei e você tinha sumido, cara. Foi aonde? Crise de diarréia de novo? Tô aqui esperando, tentando pensar...

- Eu vim para Itu falar com a Sonia. Ela me recebeu com mais uma maldita carta com dica do velho. Olha só: “O enterrado vivo suas marcas lá deixou, a grana não encontra quem viu mas não olhou”. Eu não entendi nada.

- Puta merda. Já te ligo.

Cosmo voltou ao caixão aberto, puxou a tampa arranhada para perto dos olhos e vasculhou cuidadosamente as marcas. No canto esquerdo inferior encontrou o que buscava. Leu a inscrição sem acreditar e discou o número de Odair.

- Alô.

- “É no chuê, chuê. É no chuê, chuá.
A picanha está na água quero ver quem vai buscar.”

- Ãh?

- O velho quer levar a gente de volta para aquela piscina, Odair.

- Puta merda, Cosmo, não pode ser. Eu nunca voltei lá depois daquela tarde.

- Eu vou e você também vai. A gente se encontra lá em uma hora. Eu não vou deixar aquele puto levar a melhor. Ele quer jogar pesado? Vamos jogar pesado. Eu pego essa herança nem que tenha que encontrar com ele no inferno, velho desgraçado.

**

Estacionaram os carros na entrada de paralelepípedos e desceram, pés pisando nas folhas espalhadas por todo o lugar. As paredes descascadas e as trepadeiras secas à luz da lua davam um ar ainda mais sinistro à casa que tinha sido o palco de todos os seus pesadelos nos últimos 15 anos.

Pularam a cerca de bambus que circundava o quintal e aos poucos sons familiares lhes alcançaram os ouvidos. “É no chuê, chuê. É no chuê, chuá. Não quero nem saber. As águas vão rolar.” Com o coração aos pulos e os olhos arregalados, se entreolharam.

Um sussurro lhes chamou a atenção e só então perceberam a figura de costas na churrasqueira, a fumaça cinza contra o escuro da noite e o cheiro de picanha argentina no ar.

*****

O final da história você lê aqui, amanhã: http://www.impressoesemdesalinho.blogspot.com/

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Vai

É que a vida é assim mesmo.
Não pergunta nada.
Não quer saber.
Só diz - vai.
Segue teu curso.

Que curso?
A que custo?

Vai.

Só?
Só vai.
Segue.
Só?
Vai.

Acontece que o curso não existe.
Ele é meu. Só meu.
Eu faço enquanto curso.
E quanto mais curso, mais vejo que de meu ele não tem nada.
Eu é que sou muito mais dele.
E sigo.
Porque o curso não tem volta.
Porque a vida só diz – vai.
A todo o tempo – vai.
Cada vez mais.
Só.

sábado, 10 de outubro de 2009

Folhetim Vagabundo - Piloto: Capítulo Final




Leia os capítulos anteriores começando aqui:

*
*
Pára tudo. Isso aí é o homem que tem circulado de cueca boxer pelas minhas fantasias nos últimos dois meses? Essa coisica? Ah, pelamor. Tão interessante pelos buraquinhos do binóculo... Que merda.

Com um mal humor do inferno estampado na testa, Samantha olhou lentamente para as duas figuras ajoelhadas aos pés da cadeira onde ela estava amarrada. Aquelas mulheres, que antes lhe pareciam tão interessantes, intrigantes, sedutoras, se transformaram em meras cadelas babentas, banais, nas mãos daquele tampinha com nome de loser total. Estevão. Ora, faça-me o favor. Nunca gostara do nome Estevão. Parecia-lhe coisa de contador nerd com aquele bigode grande nojento onde os restos de comida ficam alojados indefinidamente.

Sacudiu a cabeça para espantar aquela visão repugnante até que seus olhos pousaram sobre o corpo ensangüentado, inerte, no canto do quarto. Ricardo. O mala grudento que ultimamente vinha lhe dando surtos de ica agora lhe parecia tão adorável. Pobre Ricardo. Carreira promissora, shows agendados, diziam as críticas dos folhetins populares que tinha potencial para ser a próxima revelação das rádios motel, o novo Wando, o terror das fêmeas devoradoras de chocolate. Jazia agora com a faca de cozinha entalada no peito e os membros estirados, lambuzados, na poça vermelho escuro no assoalho. Pensando bem, achou que aquela morte lhe caía bem. Dramática, passional, exagerada. Achava que a morte do ex-futuro novo Wando deveria ser mesmo assim, meio ridícula, e que aquilo seria um prato cheio para os repórteres dos tablóides de semáforo no dia seguinte.

E a sua morte? Ah, a sua morte não. Imaginava a sua morte muito diferente, um clima noir, uma coisa meio chique-sinistra, instigante. Um ritual refinado e intenso tendo como clímax o deslizar da lâmina afiada pelo punho do antebraço esquerdo, o 48º corte, o derradeiro, dilacerando veias e artérias e fazendo jorrar o sangue para fora do corpo, jatos ritmados cada vez mais fracos, bombeados pelas últimas contrações cardíacas da sua existência.

Claro que naquele cenário de fim de novela mexicana de quinta, o seu ritual intenso chique-sinistro tinha ido para a merda. Olhou para a caixinha de veludo vermelho com um pedaço de picanha dentro e não teve dúvidas de que a sua noite com sol tinha virado um furdunço de péssimo gosto, uma noite de excursão de farofeiro em busca do sol, um fracasso retumbante em matéria de situação refinada para desencarnar. E então Samantha emputeceu.

Ora, passara anos, quase uma vida em depressão, cuidadosamente desprezando a felicidade, descartando pessoas, recusando amores, planejando seu grand finale, sua partida triunfal e agora isso? Quando lera no jornal a história dos Assassinos das Mulheres Desesperadas ficara empolgadíssima. O requinte do modus operandi, o jogo de voyerismo, as sutilezas do presente, do recado no espelho (sempre quis encontrar um recado de batom no espelho do banheiro...). Aquilo lhe parecera perfeito, o plano magistral, os aliados ideais para a sua aspiração maior. Teria consigo os profissionais da coisa, o supra sumo, a nata do passar dessa para uma melhor.

Entrara no jogo, esperara ansiosa pelo momento, pela noite que finalmente lhe traria o sol, e então... Lama. Aquela lama. Um Estevão, duas vadias, o corpo do novo Wando e um pedaço de picanha já meio ressecado em um quarto lambuzado de sangue. Para completar, o dedão do pé que Bárbara havia chupado não parava de incomodá-la, coçando loucamente. Maldita micose mal curada, pensou. E então Samantha decidiu que não terminaria sua vida assim.

Deixou-se levar para a cama estudando cuidadosamente suas opções de escape. Avistou a faca, a caixa de veludo, o vibrador. Enquanto era amarrada à cabeceira, lembrou-se dos episódios dos seriados baratos de luta que havia assistido, dos movimentos ágeis, das chaves de perna, dos golpes certeiros. Recapitulou também mentalmente as lições da aula de defesa pessoal que fizera há meses com o professor colombiano de bafo terrível. Sua testa franziu ao lembrar-se do tal bafo mas logo se conteve. Precisava entrar no jogo, fingir prazer, deixá-los à vontade. Precisava estar livre para livrar-se daquele imbróglio e poder morrer como havia planejado.

Conhecia Ana, sabia do que gostava, ela seria o caminho. Quando Ana beijou-lhe a boca, correspondeu intensamente. Línguas se enroscaram e coxas se roçaram enquanto Estevão e Bárbara observavam satisfeitos. Samantha suspendeu o beijo, olhou para Ana, olhou para suas mãos amarradas e aguardou. O recado estava dado. Ana imediatamente desfez as amarras. Ela queria mais, queria suas mãos por toda a parte. Que mal haveria afinal? Samantha havia entrado no jogo, pensou.

E então a merda chegou ao ventilador. Samantha reuniu todas as suas forças, aproveitou a descarga de adrenalina que lhe preencheu os poros e fez a desvairada. Em um movimento absolutamente preciso, entuchou o vibrador GG na boca aberta de Ana até a goela, fazendo-lhe engasgar e quase sufocar antes de reencontrar de perto o seu jantar. Com um salto fantástico, alcançou a faca no peito de Ricardo e lançou-a no ar. A lâmina reluziu em sua trajetória e acabou por alojar-se na caixa craniana de Estevão, meio de lado, sangue pingando como uma tiara barata de Halloween.

Bárbara soltou um grito horripilante com a visão do marido de cabeça partida e lançou-se para cima de Samantha, fogo nos olhos, dentes cerrados.

Samantha observou cuidadosamente o avanço desengonçado de Barbara, aproveitou-se da sua vulnerabilidade causada pelo ódio arrebatador e lançou-lhe um golpe na traquéia, seguido de uma chave de braço que lhe tirou o ar. Quando o corpo em suas mãos parou de se mover, Samantha arremessou-o na parede e voltou sua atenção para Ana que começava a se recuperar do ataque inesperado.

Olharam-se. Sem expressar qualquer emoção, Samantha apanhou a pesada caixa de veludo vermelho com picanha e tudo, segurou-a com cuidado em sua mão direita e arremessou-a com toda a força na direção de Ana que ficou paralisada. Caixa e picanha voaram pelo ar como que em câmera lenta, girando, espirrando sangue pelo quarto que àquela altura faria Jason, Chuck, Krueger e a Mamba Negra morrerem de inveja. A quina da caixa atingiu em cheio a têmpora direita de Ana, seguida pela picanha que lhe chulapou a face, fazendo-a tombar lentamente, saculejante e com os olhos revirando.

Samantha olhou ao redor. Seu plano havia funcionado mas não havia tempo a perder. Retirou cuidadosamente a faca do crânio de Estevão e limpou-a no edredom. Tomou-lhe também as chaves que estavam no bolso e seguiu para o banheiro. Entrou no chuveiro deixando a água lavar-lhe o sangue e levar-lhe a alma. Enxugou-se rapidamente, vestiu o robe de seda negra com cheiro de naftalina que retirou do fundo do armário e saiu em direção à porta. Parou... Olhou ao redor, avistou o que buscava, recolheu-o e saiu, deixando a porta aberta às suas costas.

...

Respirou fundo, colocou a chave na fechadura, girou. A porta se abriu e ela finalmente avistou os aposentos que nunca achou que conheceria. À sua frente a figura da morena de cabelos negros e seios pequenos lhe observava do além. Entrou, fechou a porta, sentou-se com cuidado na poltrona branca de pés tortuosos entre a luminária e a mesa do telefone. Passou as mãos pelo tecido macio enquanto olhava para a sua própria janela. Olhando de onde estava, ninguém imaginaria o que escondia aquela janela...

Já o lugar onde se encontrava era absolutamente normal. Casa sem sal, coisa de decorador insípido e pouco ousado, um lugar pastel. Ah como havia fantasiado sobre o dia em que estaria ali... Mal sabia ela.

Chacoalhou os pensamentos e lembrou-se do que tinha de fazer. Pegou o telefone da mesinha, discou os números que não se lembrava de já haver discado. Esperou.

Love Love Love
Love Love Love
Love Love Love


Fechou os olhos por um instante. Abriu-os, embaçados. Coração na boca pela emoção do que estava por vir.

There’s nothing you can do that can’t be done
Nothing you can’t sing that can’t be sung
Nothing you can say but you can learn how to play the game
It’s easy

Retirou cuidadosamente a faca do bolso do roupão, seus olhos refletidos na lâmina enviavam-lhe um milhão de mensagens instantâneas. Uma lágrima solitária lhe escapou e molhou a face. Não se lembrava da última vez que havia chorado de emoção.

There’s nothing you can make that can be made
No one you can save that can’t be saved
Nothing you can do but you can learn how to be you in time
It’s easy

Era chegada a hora. Esperaria o refrão. Sempre gostara desse refrão e um dia chegou a acreditar no que dizia. Seria perfeito. Posicionou a lâmina sobre o punho esquerdo na altura das veias saltadas, segurou a respiração e aguardou o momento, a trilha perfeita para o 48º. O derradeiro.
E então ouviu o refrão. Um suspiro sentido. E mais nada.

All you need is love
All you need is love
All you need is love, love
Love is all you need...

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Folhetim Vagaba

Já está rolando o Folhetim Vagabundo, gente. Coloquei a chamada por aqui outro dia e agora explico: seis autores escrevendo a mesma história em formato de folhetim, um começa, o outro continua e passa a bola, uma parte por dia começando toda segunda-feira e terminando no sábado.

Já viram o naipe do que vem por aí, né?

A história piloto já começou lá no blog da Luana, impressoesemdesalinho.blogspot.com. Olhem lá. É, agora. Vão lá ver!

Depois passem pelo blog da Ju Palermo onde está a segunda parte – derrubandoparedes.blogspot.com.

Hoje a Tati Rocha continua o babado no coisarara.blogspot.com. Vixe...

Na sequência vem o Du (portudoquesinto.blogspot.com), a Má Franco (olhosrecemnascidos.blogspot.com) e yo finalizando no sábado.

Quero só ver o que vai chegar para mim....

A coisa está tomando forma e até agora está uma coisa meio misteriosa, meio noir, meio sinistra, meio filme do Lynch.

Ah, no domingo a história completa vai para o blog do projeto - http://folhetimvagabundo.blogspot.com/ e na segunda começa uma nova história, com uma ordem diferente dos autores.

Vai perder?

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Wuppertal

Quase uma aparição. Esguia, pálida, cabelo mirrado, camisola escorrida e transparente pendendo de ombros que lançavam braços inacreditáveis.

Inacreditáveis.

As linhas, a delicadeza daquelas mãos tingindo de música o ar, as notas sentidas, dilacerantes. Lindas.

Nos olhos cerrados uma emoção imensa, nos rostos, todos os porquês. Corpos inquietos e vulneráveis entre móveis escuros, o humano errante abrindo passagem, criando caminhos estreitos, abrindo clareiras. Delicadeza e opressão, fragilidade e resistência interagindo, pinçando olhos.

Angústia.

A repetição do desespero nos gestos, nos corpos debatendo-se contra barreiras intransponíveis. Cabelos vermelhos saltitantes, uma camisola no chão, um corpo na mesa. De novo, de novo. Uma vontade de espaço desesperadora. Corpos confinados. Um sorriso em meio à angústia.

O primeiro fim.

Café Müller (1978) foi assim, um soco no estômago permeado de delicadeza. Nem dança nem teatro, o humano escancarado e inquieto sob os holofotes.

E então o palco se cobriu de terra escura, luzes sobre o corpo de mulher estendido no tecido vermelho. Stravinsky tomou o teatro e os movimentos de 35 corpos materializaram a música, dando-lhe outra dimensão. Eu via as notas pelos olhos de Pina, pés jorrando terra, ar enevoado nos feixes de luz, corpos ficando suados, ficando escuros, virando bicho.

A massa se movia pulsando e vazando em movimentos iguais mas não idênticos, marcados pelas sutilezas do individual. Uma massa respirante, transpirante. O som forte e animal das expirações, o vai e vem de barrigas e peitos buscando ar.

Um vendaval.

Sagração da Primavera (1975) é uma experiência que não se explica. É dança que pode ser vista de olhos fechados e música que pode ser ouvida sem ouvir, dada a intensidade de estímulos vindos de movimentos, de impactos, de ruídos, de olhares, de grunhidos e respirações. Corpo falando com corpo, sem intermediários, sem interpretações.

Eu prendi o ar sem perceber e pedi para aquilo não acabar.

E veio o segundo fim.

Palmas, Pina. Sempre. À tua obra, atemporal vez que essencialmente humana, transformadora de corpos e mentes, inexplicavelmente sensível e genial.

Café Müller

Sagração da Primavera

domingo, 4 de outubro de 2009

Folhetim

Vem aí....



Aguardem.

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

O que é????

Eu tenho sofrido uma certa gozação por conta da minha empolgação com as coisas. Aparentemente, eu faço comentários um tanto quanto exaltados que normalmente envolvem algo do tipo: “O que foi essa música?” ou “O que é essa comida?”, acompanhados de mãos para cima e um olhar assim meio...deslumbrado.

Claro que os meus queridos amigos não iriam perder a chance de tirar incansavelmente com a minha cara. Assim, nos últimos tempos a piada mais freqüente quando eu estou por perto tem sido “O que é essa alface?”, “O que é esse guardanapo?” ou coisa do gênero.

Eu olho torto-fingido e gargalho.

Nem confiança para eles. É, para vocês, seus trolhas....rs. Me empolgo mesmo, me deslumbro, babo, compartilho e quando vejo já está dito. O que é isso tudo que a gente experimenta diariamente? Melhor curtir e se deslumbrar do que passar batido, certo?

O próximo post vai ser nessa linha, já aviso. Pina. O que é aquela dança-teatro-whatever? O que era aquela mulher??????

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

A De e a Locadora

Não tem jeito, a doideira é mesmo de família. Eu sempre digo que o meu pai é, de longe, a pessoa mais distraída da face e do interior da Terra. Vixe, fácil... Eu e a minha irmã não negamos a raça e estamos ali, no mesmo trilho. Hoje ela veio com uma história assim:

Ela: Ju, eu tinha que devolver A Duquesa então passei na locadora, deixei o filme na caixa de devolução e fui levar a Lara na escola. À noite o Gu me chega e pergunta porque eu não tinha devolvido o filme. – Ué, como assim? Eu devolvi hoje à tarde. – Não De, não devolveu, ele está na sua bolsa. - Vixe.

Eu: - Vixe.

Ela: O que será que eu devolvi?, pensei na hora... Liguei na locadora toda sem graça e – Oi, boa noite, eu fui deixar um DVD hoje na devolução rápida mas vi agora que o filme está aqui, então eu devo ter devolvido a coisa errada... Será que você pode ver para mim por favor? A mulher do outro lado, tentando segurar o riso, responde: - Olha moça, devolveram hoje um boneco do Pinóquio........ Silêncio e.......... Hahahahahahaahahahahaha, muitos risos dos dois lados da linha.

Eu: - Hahahahahahahahahahahahaha

Ela: - Hahahahahahahahahahahahaha

Ela: Aí eu falei: - Não moça, o boneco do Pinóquio não fui eu....hehehe.... Devolveram alguma outra coisa estranha (mas não tanto) por aí? - Ah, tem um DVD de Robôs que não é da loja.... - Isso moça, isso. Fui eu, é meu. Ufa! Até que eu não sou tão estranha né? Já o figura do boneco do Pinóquio....

Uôu.

A doideira é de família mas definitivamente não é só da minha...rs

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

A Inscrição

“Venha viajar de graça pela Colômbia no novo programa da NatGeo.”

Deixa eu ver qual é a dessa história....Viajar de graça pela Colômbia (na verdade viajar de graça, ponto) não seria ruim, né.

Click.

A ficha de inscrição pulou na minha frente assim, arreganhada, e eu, que não posso ver uma ficha de inscrição, comecei a preencher.

Você isso, você aquilo, qual o seu maior medo, qual a experiência mais mais da sua vida, qual o seu signo, o que você comeu ontem, qual o tecido da sua calcinha, blá, blá, blá.... Trinta e sete milhões de perguntas dissertativas depois aparece um campo onde eu deveria colocar a URL do meu vídeo no youtube.

Caraca, eu não tenho vídeo. Ta, tenho vídeos no youtube mas são vídeos de peças, em cena, interagindo.... Dei uma de migué, deixei vazio e...

Enter.

“Este campo é obrigatório, por favor inclua o link para o seu vídeo.”

Tá, vocês querem um vídeo, eu vou escolher um. Esse não, esse também não, ninguém merece eu com a peruca da Neena... Vai esse aqui mesmo.

Ctrl+C, Ctrl+V.

Mais vinte e duas perguntas sobre as vantagens e desvantagens das mulheres em uma viagem e o meu histórico médico completo e voilá. Inscrição feita com sucesso.

Resolvi então fuçar no regulamento e descobri que o tal do vídeo era, na verdade, a parte principal da inscrição, devendo conter uma apresentação minha falando sobre um punhado de coisas, me descrevendo e tals.

Hahahahahahahahahahahahahaha......hehe.

Imaginem a cara dos caras quando derem de cara com o vídeo que eu mandei:

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Ar-te

Pina, orquestra de tango, festival de flamenco, gravação de CD de MPB, aula de dança contemporânea, teatro, workshop de musical, fotografia, ensaio vocal. As minhas semanas são assim, recheadas de estímulos artísticos tão ricos quanto distintos e eu no meio, olhos arregalados e coração remexendo de um lado para o outro do peito.

Arte boa faz isso com a gente. Salve, salve.

Em tudo o que eu trabalho atualmente existe arte, graças a Deus. Arte de múltiplas formas, feita, criada, passada adiante, que nasce e se esparrama à minha volta, pega um pouquinho de cada, um pouquinho de mim e escorre por aí, se refazendo. A arte é foda e não tem outra palavra que possa traduzir isso assim, em letrinhas. Só foda mesmo. E olhe lá.

Não faço idéia de como tanta gente vive sem arte. X. São anos sem ir ao teatro (às vezes uma vida...), sem ler um poema, um bom livro, sem ouvir à música sendo feita ali, ao vivo, nascendo das cordas, do ar, sem prender a respiração com um gesto, um corpo reagindo aos sons, sem enxergar as coisas por outros olhos, sem repensar tudo depois de virar geléia de gente liquefeita por uma apresentação duca.


Ar-te. Tão essencial à vida propriamente dita, entendida como o que vale a pena por aqui, quanto o ar para a mais óbvia e básica vida fisiológica. Preenchamo-nos, pois, de ar-te, aspirando fundo, deixando as células embeberem-se, incharem, tomarem novas formas para depois expirarmos o mesmo ar, então diferente, que em seguida preencherá novas e outras células, outros corpos, cada vez mais vivos, cada vez mais outros, cada vez mais sãos.

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Multiétnica


- Andem em silêncio pois está rolando a gravação do CD das etnias.

CD das etnias?


Fui chegando na oca central e as vozes femininas misturadas com o som dos pés ritmados no chão ficou enorme.

Caraca, a gente tem mesmo tudo virado para a lua... Os caras estão gravando o CD das tribos bem na hora que a gente chega...

Eu saquei a minha câmera, entrei na oca e aí, me esquece. Pirei mesmo.

Era índio dançando, índio assistindo, índio dormindo, índio ninando índio miniatura, índio posando para foto, índio rindo. Eles e eu, rindo à toa com aquele presente inesperado. A viagem começou definitivamente duca.

Dançaram, cantaram e tocaram. Várias tribos desse Brasil inteiro, pintadas, paramentadas, cada uma com as suas cores, seus símbolos, seus sons. De comum, a cor da pele, os cabelos lisos e negros, os olhos amendoados e as Havaianas. Como índio gosta de Havaiana, gente. Não se vê unzinho sem as suas legítimas que não deformam e não soltam as tiras.

No dia seguinte acordamos e fomos confraternizar. Coisa de louco aqueles índios todos vestidos de gala, colares, cocares, pulseiras, adereços, cabelo raspado, pele pintada, de cócoras... comendo com garfo e faca. No prato, com garfo, com faca e de Havaianas. Sabe aquela sensação de que algo está muito errado, de que alguma coisa não pertence àquele todo? Pois é.

Perto dali, dentro da oca, em uma fila de escrivaninhas com computadores se lia: “Uso exclusivo dos indígenas”. Pai, mãe, criançinhas, todo mundo de olho nas telas e manejando mouses. Caraca. Os caras nem falam português mas usam a internet...

Eu precisava registrar aquilo. Apontei a câmera e:

“Um real, um real.”

Disseram uma menina e um garoto em português quase ininteligível. Tá, não falam a língua mas usam a internet e sabem cobrar por fotos. Aquele pedido de dinheiro me causou um mal estar, por eles e por mim, me senti intrusa e eles, provavelmente usados.

“Eu não tenho um real aqui. Mas as fotos ficaram lindas, vocês querem ver?”

Caras de ãh?.

Mostrei a câmera, cabecinhas balançaram um sim.

Eles viram, riram para a tela, riram para mim. Pediram mais. Sem dinheiro envolvido, as imagens na telinha seriam a minha retribuição. Eles gostaram. Eu me senti menos intrusa, eles, menos usados e a gente até se divertiu. Rindo nas fotos, eram crianças como todas as outras.

No último dia fomos a uma balada local, casa de forró. Quem chega? Os índios. Uma galera toda vestida para festa. Entrou, fez roda e começou a cantar e a girar batendo os pés. Coisa forte essa, o som diferente daquelas vozes, o ritmo marcado no chão, grave, uma corrente, um redemoinho invisível que arrastou a balada para dentro e quando vi, a balada inteira estava a rodar batendo os pés ao som daquele canto.

Uma passagem. Assim como começou, se desfez e sumiu pela porta da frente, um sambinha invadindo a pista e dispersando o redemoinho, a corrente e os sons.

Doida demais essa experiência com os índios. Pessoas tão diferentes de mim quanto se pode ser. Um bololo de fascínio, receio, curiosidade e, por incrível que pareça, identificação. O redemoinho é humano e universal, afinal.

terça-feira, 1 de setembro de 2009

?

Restaurante japonês. Self-service. Meu prato cheio de coisas cruas coloridas.

Conversa, muita conversa.

Planos, contas, planos... Algo dentro da minha boca me chamou a atenção.

Huummmm, que delícia isso. O que era isso?

Eu engoli algo divino e não conseguia lembrar o que era. Pode? Pode???? Não. Claro que não. Como é que se engole algo e no segundo seguinte não se lembra do que era o algo? Essa minha distração doida ainda vai me complicar.

Eu estou mutcho louca, gente. Tentei por tudo lembrar o é que estava tão bom, do que era aquele gosto e necas. Fui pegar o segundo prato, olhei o buffet para tentar identificar a coisa boa e necas. Necas. Nunca vou saber o que me causou aquele huuummmm. Aquele huuuummmm está perdido para sempre no meu inconsciente. Uma lembrança boa e única das minhas papilas gustativas, irrepetível, boiando inacessível na minha memória de minhoca junto com milhares de coisas deliciosas que eu fiz e não lembro.

Uma doida varrida, eu.

Amanhã volto a tomar o Ginko Biloba. Diariamente. Menos nos dias em que eu esquecer.

Sovacos Hidratados

Quatro mulheres vestidas de branco conversam animadamente sobre... axilas.

Aparentemente o novo desodorante de uma marca conhecida, além de sua função óbvia, também trata, hidrata, embeleza e de alguma forma alivia... axilas.

Não sei se eu sou um bichinho estranho mas as minhas axilas nunca me incomodaram. Mesmo. Nunca tive qualquer problema em levantar os braços animadamente, dar tchaus demorados, praticar esportes que envolvessem a elevação prolongada dos membros superiores ou em dançar coreografias de Bob Fosse. Minhas axilas nunca estiveram em pauta e jamais senti a necessidade de hidratá-las. Elas sempre foram bonitinhas e, graças aos desodorantes comuns, inodoras.

As quatro mulheres do comercial, por sua vez, pareciam incomodadíssimas com os seus sovaquinhos e pela felicidade com que falavam do novo produto, provavelmente teriam suas vidas divididas entre o antes e o depois do fantástico e inovador lançamento.

Sei não mas parece que o povo não tem mais o que inventar. Tudo já foi feito e pensado e explorado e devidamente vendido em caixinhas chamativas. O jeito agora é empacotar e anunciar animadamente o mesmo de antes, maquiado e cheio de laçinhos pelo triplo do preço.

Tem quem compre, vai saber. Deve ter quem acha que a aparência das axilas é um problema sério e vai sair por aí dando tchau muito mais feliz. Até o próximo lançamento.

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Segredo

Oito quilômetros pelo meio do mato, cruzando rio, tronco, passando por uma piscina natural mais bonita que a outra e nadando em água cristalina. O caminho era de tirar o fôlego pela paisagem e pelo cansaço mesmo, trilha das boas, daquelas que parecem que não vão acabar nunca quando, de repente, do nada, no meio das árvores... Voilà. Um paredão de pedra molhada dourada pelo sol, brilhando tanto e tão enorme que foi preciso uma guinada de cabeça de 90 graus para que eu enxergasse o limite entre pedra dourada e azul limpo do céu. Embaixo da pedra, bem na minha frente, uma faixa de água verde cristalina correndo entre rocha e trilha, translúcida, raios de sol iluminando as pedras submersas. À minha direita um barulho forte-contínuo de água caindo me chamou a atenção e então eu a vi.

Cachoeira do Segredo.

Caraca, caraca, caraca.

Aquele era sem dúvida um dos lugares mais lindos que eu já tinha visto, ao vivo, em fotos ou na TV. Sabe cenário de filme do Indiana Jones? Então, isso. Setenta metros de água caindo branca, leitosa, deixando rastro de névoa pelo caminho que terminava em um poço esverdeado rodeado por um paredão sem fim de pedras recortadas pelo rio, pelo tempo. No encontro entre queda e poço, um arco-íris. Atrás da cachoeira, as pedras em degraus faziam relevos, centenas de pequenas cachoeiras que se juntavam e se sucediam até morrerem na espuma e virarem poço transparente onde a gente se jogou, gritou e brincou feito criança. Eu nadava de costas, cara de besta, e não cansava de olhar para cima, para aquela visão inacreditável que eu não queria mais parar de ver.

E então eu entendi o nome da cachoeira. Segredo. Segredo sim, porque por mais que se conte, se explique, se mostre, só quem foi até lá, deixou a água cair forte nas costas e se jogou naquele poço para saber realmente do que se trata aquele lugar.

Eu vi muitas outras coisas lindas naquele canto do Brasil. Chapada dos Veadeiros, meu povo. Cheia de gringo do mundo inteiro, muito pouco brasileiro conhece. Vi mais cachoeiras, piscinas de água quente, poços sem fundo de água verde translúcida, o pôr do sol mais colorido de todos, um céu inacreditável com estrelas que não brilham como as daqui.

Eu bebi daquilo tudo com olhos de criança, tudo novidade, tudo tão diferente das visões de costume. Até o céu era outro...

A gente devia se sentir assim mais vezes. Lugares como esses recarregam os ânimos, fazem a gente pensar e deixam imagens para onde se volta quando quer, como aquela vista de baixo, sol batendo na pedra dourada e iluminando o fundo do rio, água leitosa caindo e jogando gotas de arco-íris nos meus olhos e no meu sorriso completamente besta. Segredo.





quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Chupando o Dedo

Eu lá, toda relaxada lendo o texto da Ópera do Malandro, pensando na coreô de gafieira e curtindo a massagem nos pés quando...

- Olha que lindo, Ju. Lindo! Seu pé está tão lindo que merece ser chupado.

Parei de ler e olhei para ela com cara de whattheheck pensando se eu tinha ouvido aquilo mesmo...

- Ãh?

- É Ju, pé assim tem que ser chupado. Olha esse dedão...

Que capacidade é essa de atrair maluco, minha gente? Quem tem uma manicure que diz isso assim, no meio do salão na maior naturalidade?

Eu, só eu.

- Jura menina, chupado? Resolvi dar corda para ver aonde aquilo ia parar.

- Ahã. Nunca chuparam o seu dedão do pé? Menina, mas é bom...

Risos. O que mais eu podia fazer?

- Eu também não sabia disso mas aí a fulana, que faz escova, sabe? Então, ela cantou a bola, disse que o namorado dela adora e resolvi provar. Ai Ju, experimenta!

- Ai experimenta mesmo, Ju, não tem como não gostar!
Gritou a fulana do outro canto do salão.

Gargalhadas. Muitas.

Que salão é esse, meu povo? Obrigada meu pai por não ser lá onde eu depilo a virilha...

terça-feira, 11 de agosto de 2009

A Volta, Seu Orlando e Santa Teresa


OK. Back in business por aqui.

Vida danada de boa essa. Rio, Veadeiros, samba no morro, água fria de cachoeira, corpo doído e pele ralada de trilha, festa, festa, festa, queridos por todo lado sem dia nem hora marcada, fotos, música, dança de balada, dança que eu nunca dancei.

A minha vida anda um fim de semana muito do movimentado e por isso a ausência sentida. Fala que o motivo não é bom?

Fato é que não me falta coisa para contar, reflexão para dividir e história para compartilhar. A listinha está enorme e já não cabe mais nos papéis de bloquinho. Bora colocar o papo em dia minha gente.

Para começar, seu Orlando.

Seu Orlando é um senhorzinho de oitenta e poucos anos que a gente encontrou lá no Rio, no miolo de Santa Teresa em dia de samba no morro. Todo domingo rola um samba de primeira na praça, samba pelo samba mesmo, organizado pelos moradores que são todos musicais. A energia vem de uma extensão puxada da casa mais próxima, os caldinhos e a bebida são vendidos improvisados no banco da praça forrado de toalha xadrez, o público vem chegando da vizinhança que se conhece toda e se trata pelo nome e pergunta da saúde da vó e do time de futebol.

Adorei aquilo. Uma vilinha charmosíssima com o astral de 50 anos atrás, no meio daquela maluquice que é o Rio que eu conhecia. E mais: o seu Orlando. Pés e juntas que há oitenta e poucos anos passeiam por aqui, dançando que nem criança, mão no joelho, abaixadinha, samba no pé e na alma em cima daqueles paralelepípedos que já viram de tudo. Eu fiquei besta com a alegria e a disposição daquele homem bebendo Fanta e sambando bonito, da hora que a gente chegou até o último repique do tamborim. E tem gente que com 50 anos a menos não tem a alegria de se jogar, não deixa o samba entrar e passa o domingo vendo videocassetada na TV.

Santa Teresa é definitivamente demais. Para entender o espírito daquele lugar, para saber mesmo do que eu estou falando, não precisa mais nada, nadinha, a não ser entrar na roda para ver o seu Orlando sambar.







terça-feira, 7 de julho de 2009

Fila da Carta

Eu me diverti hoje no exame para renovação da carteira de motorista.

Assinei a folha, sentei no banco de espera e comecei um novo jogo de paciência spider. Ao meu redor:

- Uia quanta gente!

- E essa fila? Pra que é? Ah, sei lá. Melhor entrar na fila.

O que é isso entre brasileiro e uma fila?

- Alguém aí sabe a resposta da pergunta da bicicleta?

- Que pergunta da bicicleta????

- Aquela da distância da bicicleta.

- Distância da bicicleta????

- É, caiu na prova da minha esposa.

Alvoroço. Eu ria por dentro daquele monte de marmanjos parecendo criança em dia de chamada oral.

- Ué. Mas na Internet não tinha nada dessa coisa de bicicleta....

- Mas tinha no livrinho.

- Livrinho?

- Alguém aí sabe a resposta da bicicleta?

- Alguém aí tem o livrinho?

Surreal o povo pirando por causa da bicicleta.

Na hora de uma das figuras assinar a lista:

- Os nomes estão em ordem alfabética?

Não minha senhora. Os cento e poucos nomes estão em ordem aleatória, te vira aí.

Ôxe. Mas é claro criatura, iria estar em que ordem? De tamanho?

O papo foi nesse nível até a entrada na sala. Quarenta minutos de prazo para fazerem a prova. Eu saí com quinze e percebi que a coisa ali ia longe.

Não caiu para mim a história da bicicleta, mas só para constar, a distância lateral mínima para se ultrapassar uma bicicleta é de 1,5m. Infração média sujeita a multa e 4 pontos na carteira.

Vai dizer que não é útil fazer a tal provinha?

sexta-feira, 3 de julho de 2009

Pina

De tempos em tempos aparecem pelo mundo pessoas absolutamente especiais, transformadoras, criadoras de novos paradigmas. Depois delas, nada mais é como antes.

Assim era Pina para as artes. Bailarina clássica de formação, rompeu com todas as amarras da dança para criar e mostrar o que quis, como quis. Tocava o humano, bailarino ou não, falando de corpo para corpo com movimentos e silêncios que vinham da alma, inspirados em acontecimentos e sensações. Pina encenava a vida transmutada em sonho com o corpo e a voz dos seus bailarinos e dela própria. Pina era poesia em movimento, de encher os olhos e cutucar o peito.

Dia 30 de junho ela se foi. Ida inesperada.

Fica a inspiração.

“O que me interessa não é como as pessoas se movem, mas sim o que as move.” (Pina Bausch, 1940-2009)



Quis

Eu quis porque quis
Saber da sua rua
Da luz na janela
Do som no seu som
Dos livros na estante
Da cor do sofá
Da letra de mão
Da foto na mesa
Do medo de mar
Do lado da cama
Da pasta de dente
Do canto no banho
Do peixe no aquário
Do gosto por sal
Do gosto por mim
Do gosto geral.

Eu quis por que quis
Saber da sua rua
Eu quis porque quis
Saber de ser tua.

quinta-feira, 2 de julho de 2009

Rodoviárias

- Mãe, minha mão tá doendo.

- Eu não pego nessas catracas.

- 9741-9472.


- Eu sei, meu filho, eu sei.

- Tenho nojo, vai saber.

- Anota com o DDD.


- O saco tá pesado, mãe.

- Eu também tenho nojo, passo virando a bunda.

- Liga depois das dez.


- Você agüenta, filho. Falta pouco.

- Assim?

- Depois me conta o que ele disse.


- Não vai dar, mãe. Tá doendo muito.

- É. Melhor não?

- Como assim não?


- Me ajuda filho. A gente precisa chegar em casa antes do seu pai.

- Pelo menos não dá nojinho.

- Ai se você não contar.


Mãe e filho de uns 8 anos, simples, carregando dois sacos enormes de coisas muito, muito pesadas e tentando chegar em casa antes do pai. Onde será a casa, quais serão as coisas, como será esse pai? Será que o pequeno vai conseguir carregar, será que eles vão chegar a tempo?

Dois homens estilosos, muito afeminados, passando pelas catracas com nojinho e discutindo a melhor forma de fazê-lo. Por que tanto nojo de passar nas catracas? Será que eles pensam nisso a cada catraca ultrapassada? Será que eles são gays? Há-há.

Adolescente falando alto no celular lilás sobre assunto típico da fase. O que será que ele, o assunto, vai dizer?


Situações de rodoviária cercando alguém muito, muito curiosa que pira na batatinha imaginando a continuação das histórias ao redor e não se contenta em só imaginar, e coloca no blog e se acha muito, muito doida às vezes. Quase sempre. Mas que não consegue parar de imaginar.


***


- Você pode me dar licença?

- Você faz questão de sentar aqui? Eu estou cheia de bagagens e o ônibus está vazio...

Cara de fiofó para o meu lado.

- Ah, tá. Eu sento em outro lugar mas se alguém vier falar alguma coisa vou dizer que foi você.

- Claro, pode dizer.

Dêr.

30 poltronas vagas no ônibus e a criatura queria que eu tirasse as minhas 527 bagagens do banco para se apertar do meu lado, só porque aquele numerinho constava da sua passagem.

Pode?

Não, né. Claro que não.

Tem gente que acha bonito ser mala.

sábado, 27 de junho de 2009

Senhora

A mulher olhava a criança e eu olhava a mulher.

Fiquei minutos-horas ali, olhando aquela senhora nos seus 60 e muitos a observar a criança desconhecida sem quase piscar.

O que será que se passava por trás daqueles olhos?

Eu olhava e pensava: O que você fez da sua vida, mulher? Agora que o tempo passou, que a maior parte se foi, que as escolhas estão quase todas feitas, os caminhos traçados, trilhados (ou não), qual o saldo do trajeto? O que mostraria a sua retrospectiva? Seria curta, sem sustos, sem apnéias, sem entregas, sem saltos de olhos vendados? Seria insossa? Seria muito menos do que deveria ser?

Ou seria linda?

Quereria ela retornar à criança para reescrever a tal retrospectiva?

Acho mesmo que não.

Ela tinha os olhos serenos, a criança lhe penetrava as retinas e lhe abria portas escondidas. Imagens. Boas, eu diria, pela doçura daqueles olhos. Ela tinha a tranqüilidade das chances aproveitadas e dos riscos corridos.

Acho mesmo que aqueles cabelos prateados viveram muita coisa deliciosa, outras nem tanto, mas que escreveram uma história digna de vista e revista por olhos serenos de uma vida muito bem vivida.

E no meio do caminho entre criança e senhora, me imaginei ali, ela.

Que serenos e doces os meus olhos também possam ser.

terça-feira, 23 de junho de 2009

O Pedido

Soluçava. Ombros sacudindo, fronte úmida. Espalhou o choro pelo quarto enquanto me pedia para ficar.

Com os braços ao redor do meu pescoço me molhou os tecidos e me apertou forte.

Eu não queria mesmo ir.

Ofereci meus braços, meu colo, beijei a fronte, acalmei o choro. O silêncio ocupou o seu lugar e uma calma aconchegante chamou o sono para dançar.

Saí sem olhar para trás, riso no rosto lembrando do pedido soluçado mais doce do mundo:

- Não vai, tia Bu. Não vai...

segunda-feira, 22 de junho de 2009

As Fontes do Meio-dia

Cinema, sexta-feira, quatro da tarde.

Uma sala de pessoas sozinhas mexendo no celular.

Um filme sobre pessoas sós.

Um filme bom, de final previsível, mas com um caminho gostoso de ver e a atuação deliciosa de dois atores fantásticos.

Lá pelas tantas Kate diz para Harvey:

- Eu não vou a fontes ao meio-dia, Harvey. Isso não é vida real.

Não?

Sei não. Acho que a vida real é o que a deixamos ser. O inesperado e as fontes do meio-dia que nos surpreendam e nos tirem do eixo. E não são mesmo essas as coisas que fazem a gente se sentir vivo? Que fazem o sangue borbulhar e o coração bater?

Harvey, que àquela altura já tinha sacado tudo, diz: É, Kate. Isso é vida real.

Deveria ser.


Não tem vida mais real do que a das fontes ao meio-dia.