sexta-feira, 24 de abril de 2009

O Moço do Farol

Quando eu me mudei para essa rua, logo no primeiro dia de passeio matinal com o Lu encontrei na esquina o moço do farol.

- Qual o nome dele?

- Luke.

- Lupi...Lupi...

- Não. Lupi não, é Luke.

- Lupi...Lupi...

OK. O Luke seria Lupi por ali. Tudo bem.

Eu ri e o Lu só olhava para ele com a língua cor de presunto para fora, ofegante.

- Tá cansado Lupi? Que bonitinho.

Quase todos os dias a gente se encontrava. Tudo bem? - Tudo. - E por aqui? - Tudo. - Lupi, Lupi, tá cansado? Que bonitinho. - Ele gosta de você, olha só, dá até beijo. – É. Eu também gosto dele.

As pessoas passavam dando dinheiro, roupas, comida. Deram até um filhotinho de cachorro que acabou dentro de uma caixa de papelão, comendo metade do meu queijo minas e tomando leite semi-desnatado até a hora de ir embora com ele para a sua nova casa.

Ele agradecia, sentava no muro da igreja e esperava o tempo passar.

Um dia eu fui passear e ele não estava mais lá. Sumiu. Sumiu por meses, desapareceu da esquina e eu fiquei um bom tempo me perguntando o que teria acontecido com ele. Boa coisa não devia ser...

Pois não é que ele voltou? Apareceu de novo, mais magrinho, abatido, parecendo menor ainda do que já era. Mas inteiro. Disse que teve de fazer uma operação no pulmão, que foi difícil mas que agora já estava tudo bem e depois de muito tempo eu ouvi de novo: Lupi, Lupi, tá cansado? Que bonitinho.

Foi legal. Eu gosto de ver ele rindo ali na minha frente, brincando com o Lu. Eu nunca dei nada para ele. Dinheiro, comida, roupas, nada. Sou contra esse tipo de coisa (a não ser com velhinhos, acho uma judiação um velhinho na rua, no fim da vida, tendo de se sujeitar ao cansaço e à humilhação, mas isso já é outra história...). E não é que ele gosta de mim, mesmo assim? Fica todo feliz quando me vê chegando com o Lu. Acho que uma conversinha, um sorriso e um pouco de atenção fazem, no fim das contas, mais diferença do que as coisas que ele ganha das janelas dos carros.

sábado, 18 de abril de 2009

Uivo

Aula de contemporâneo ao som de Amy.

- Auuuuuuuuuuuuuuuu! Auuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuu!

Ãh?

Um uivo ecoou no melhor estilo A Excêntrica Família de Antônia (já viram esse filme? Vejam.).

- Auuuuuuuuuuuuuuuu!

- Que coisa doida é essa?

- Será que é a Renata? Isso tem cara de coisa da Renata....

- Mas será gente? A Renata ia uivar assim?


- Ia. Ela é cheia de graça.

Caraca. Uivando desse jeito, melhor levar a coitada para ensinar ballet para a galerinha do Cândido Ferreira.

- Auuuuuuuuuuuuuuuu!

A gente tentava abstrair e levar a aula a sério mas estava difícil. Vamos combinar que a nossa turma também não é lá das mais normais. Só maluco. Só não chegamos ao ponto de uivar.

Ainda.

De repente une-se ao uivo uma barulheira doida de marteladas enlouquecidas.

Pronto, a Renata despirocou de vez. Não satisfeita em uivar de cócoras no meio da academia, resolveu pirar o cabeção e sair martelando pelos corredores. Senso de humor exótico, né? O que as pessoas não fazem hoje em dia para chamar a atenção...

Eu não conseguia parar de rir imaginando a professora de ballet naquela situação.

- Gente, não pode ser a Renata. Deve ser o lobo-guará do bosque.

- Que nada suas doidas. Isso é barulho da reforma da casa de trás. O uivo vem da serra, junto com as marteladas.

Ah, estava tão interessante imaginar a Renata fazendo aquilo tudo... Essa história de reforma acabou com a minha graça.

Só sei que àquela altura não havia mais a menor possibilidade de se dançar nada seriamente. A aula tinha ido para o brejo, junto com a fama da coitada da Renata que não tinha nada a ver com o babado e deitou na cama bonita.

Quero ver eu olhar para ela sem gargalhar na próxima vez que a gente se encontrar.
Quero ver eu controlar a minha vontade insana de uivar para não perder a piada.

sexta-feira, 17 de abril de 2009

Volto

Tira foto
Foto de estúdio
Foto de casamento
Foto de palco
Foto de gente
Trata foto
Escolhe foto
Imprime foto
Cria exposição
Divulga exposição
Para, respira
Lasanha de microondas
Pensa sente pensa
Aula de dança
Aula de canto
Núcleo cênico
Prepara cena
Ensaia peça
Decora texto novo
Lembra texto velho
Reinventa o que já foi
Pensa o velho diferente
Sente o velho diferente
Desapega
Para, respira
Esfiha do Habibs
Sente pensa sente
Confere caixa
Separa nota
Negocia patrocínio
Avalia projeto
Confere
Checa
Conta
Lança
Xinga
Divulga o bar
Aprova cartaz
Aprova flyer
Aprova release
Faz orçamento
Planeja evento
Para, respira
Miojo de legumes
Pensa pensa pensa
Dança
Canta
Cuida do Lu
Comida do Lu
Vacina do Lu
Reunião de família
Matuta projeto novo
Manicure
Depilação
Banho de ervas
Acupuntura
Lembra do blog
Lê jornal
Troca idéia
Planeja workshop
Passa no posto
Carro no funileiro
Atualiza currículo
Envia arquivo
De novo
De novo
Maldiz a internet
Para, respira
Whopper com queijo
Sente sente sente

Pensa
5 horas de sono
Cansa
Esgota
Pira
Gosta
Prefere
Procura
Lembra do blog
Falta
Faz falta
Já volto
Volto.

segunda-feira, 6 de abril de 2009

Detalhes pelo Caminho

Ontem na rodoviária uma menininha acariciava a mãe triste com um bebê no colo.

Eu diminuí o passo para ver aquela cena se desenrolar ali na minha frente. A pequena passava a mãozinha miúda no rosto da mãe, os dedinhos pelo cabelo, segurando na mão maior. A mãe com o olhar parado estava longe dali. O bebê só assistia, como eu.

Uma foto linda.

As pessoas que passavam apressadas, saindo do metrô, nem tomavam conhecimento daquele fiozinho de amor e humanidade acontecendo no canto daquelas paredes de concreto. Ocupadas e focadas no seu destino final, perdiam os detalhes pelo caminho.

Eu ali, ultrapassada pelas fileiras de pessoas do corre-corre, olhava e imaginava a história daquelas três meninas e me abastecia de ternura com a ternura daquelas mãozinhas cuidando da mãe.

Como é que se passa impassível por uma cena dessas?

Não se passa. Não se deveria passar.

As pessoas, tristes, a passos largos e de olhos fixos no horizonte inatingível, se esquecem de perceber e cheirar as flores pelo caminho.

sexta-feira, 3 de abril de 2009

O Dedo

O meu dedo resolveu mexer.

Não mexer quando eu mando, isso ele sempre fez graças a Deus. Ele resolveu, do nada, mexer por conta própria.

O abusado é o indicador da mão esquerda. Metido. Todos os outros nove amiguinhos ali, de boa, sossegados, e ele sambando quando bem entende.

E o bicho é esperto. Começou de mansinho há uns três dias, de leve, quando eu estava digitando. Era relaxar as mãos que de repente o danado sacudia de fininho. Eu olhava para ele, fazia uma cara de ué e pensava... Eita coisa doida. Não deve ser nada, já já passa.

Pois é, isso rolou por dois dias até a noite passada. Deitei para dormir, pregada, praticamente um zumbi, quando o maldito dedo resolveu ter um ataque de estrela e dançar loucamente. Eu não estava acreditando naquilo. O danado não parava por nada.

Eu já ouvi falar de vários tipos de insônia, mas não conseguir dormir porque o seu próprio dedo está te cutucando, essa é nova.

Eu prendia o maluco entre os joelhos, debaixo do travesseiro, fechava a mão... Nada. Ou melhor, tudo. O dedo estava com tudo. Fiquei nessa luta surreal entre mim e essa parte específica de mim por um bom tempo até dormir exausta quando o barulho da rua já estava voltando a aparecer.

Abri os olhos e qual a minha primeira percepção matinal? O dedo continuava pirando o cabeção. Não botei uma fé, juro. E aí quem começou a pirar o cabeção fui eu, claro.

Ai meu Deus, será que é alguma coisa séria? Ta piorando... Pode ser Parkinson, com a minha memória de minhoca e agora esse dedo, bem possível.... E se for alguma doença degenerativa? No ritmo que está indo, daqui a um mês vou estar como o Stephen Hawking na cadeira de rodas, só o maldito dedo mexendo pra lá e pra cá... Se eu ainda fosse um gênio da física, as pessoas sempre esperam esse tipo de coisa de um gênio da física: “Você viu o que aconteceu com o fulano? Vi coitado, mas essas fatalidades são comuns com pessoas assim, gênios da física.”

No auge da minha piração, pensei que aquilo parecia roteiro de filme C de terror-trash, daqueles em que o membro assassino com vontade própria sai à noite praticando atos horripilantes e a pessoa acorda cheia de sangue e sem se lembrar de nada. Imaginem só os atos hediondos que um dedo poderia praticar... Nope, melhor deixar prá lá, isso ia acabar virando roteiro de filme noturno do Multishow.

Me arrastei para fora da cama morrendo de sono (não ia rolar de dormir mais, não com aquela protuberância exibida anexada em mim pululando incansavelmente) e encarei o dia, zilhões de coisas para fazer. Às vezes ele me lembrava de que estava ali, animadinho, mas a coisa sinistra foi parando, parando, e quando chegou a noite, estava pianinho, de boa. Acho que tinha passado o momento estrelinha e ele acabou resignado à sua condição de mísero dedo, subordinado à minha magnânima vontade. Que continue assim, quietinho no seu canto esquerdo superior.

Aquilo tudo foi muito, muito bizarro. O mundo já está doido o suficiente, a última coisa que eu preciso é que o meu próprio dedo despiroque junto.

quarta-feira, 1 de abril de 2009

Melecas Coloridas

- Alguém topa um joelho de porco?

- Hummm, não Ju, muito forte. / Ai, não, hoje não. Talvez no almoço. / Não gosto de joelho de porco.

Nada, três marmanjos na mesa e nenhum deles encarou o meu joelho de porco. Aparentemente as pessoas acham muito forte joelho de porco para se comer no jantar, depois das dez. Uma bisteca, uma costelinha de meio metro ou um lombo, tudo bem, mas o joelho, ah, o joelho não. Muito forte essa parte específica do porco. Dã, vai entender.

OK, como eu sou uma draga mas não sou louca, desisti da idéia de comer o tal joelho sozinha e parti para a segunda opção. Por que não pedimos uma sugestão para o garçom? Falou o meu amigo tão indeciso quanto eu.

- Essa prato “colorido” ser muito bom. Vir com peixe Hering, carne de onça, geléia da porco e algumas acompanhamentos.

Na verdade ele não falou com esse sotaque todo, só estou dramatizando para que fique claro que estávamos em um restaurante típico alemão.

Fato é que a gente topou a sugestão. Ah, um peixinho, um pouco de carne de onça (que na verdade é um quibe cru sem o trigo, ou seja, carne crua de boi), a tal da geléia de porco que a gente ficou curioso para experimentar e ainda alguns acompanhamentos X. Eu não tenho frescura para comer, meu amigo também não. Que venha o colorido.

Há...Há. Claro que a gente sifu.

Muito cuidado meus amigos. Nunca confiem em um garçom de macacão verde e suspensório que erra os gêneros e as conjugações verbais. Isso poder ser muita, muita, traumatizante.

Quando o nosso prato colorido chegou, a gente não sabia nem por onde começar a comer. Na verdade a gente quase perdeu a fome mesmo, o quase só não deixou porque era fome prá caramba. Um punhado de carne moída vermelho-fosforescente de tão crua, uma coisa branca que parecia chantily com maçãs em cima e um rabo de peixe sinistro saindo para fora, um pudinzinho congelado com pedaços de coisas não identificadas dentro, fatias de uma lingüiça estranha e escura feita de vísceras de porco, meia salsicha e batatas.

A salsicha desapareceu em dois segundos. Era o único objeto conhecido ali, além das batatas, e nós a atacamos vorazmente. A carne de onça veio em seguida, sumindo rapidamente do prato que agora parecia ainda mais ameaçador: um rabo de peixe escuro esquisito saindo de dentro do chantily com maçãs, o pudinzinho de meleca congelada e a lingüiça de vísceras.

A essa altura eu comecei a comer batatas e o meu amigo só dizia:

- Tá com fome? Come uma víscera.

Claro que a gente ficou com dor de tanto gargalhar, claro que isso virou piada por um bom tempo e claro que eu fui dormir rindo por conta dessa história toda. Claro também que eu tive que pedir um salsichão branco, bem grande, para matar a nossa fome, que quando chegou na mesa foi uma visão do paraíso depois do pesadelo colorido.

Tudo por quê? Por que ninguém encarou o meu joelho de porco todo rosinha e delicioso. É forte, é forte... Forte foi a visão daquele rabo de peixe medonho na espuma branca de maçãs. O resto é conversa.


Da próxima vez peço o meu joelhinho bonita, sozinha ou acompanhada. Os marmanjos de estômago fraco que se afumentem todos no meio das melecas coloridas.