segunda-feira, 31 de março de 2008

Crianças

Quatro crianças aparentemente de rua, com roupas sujas e rasgadas e um porta-níqueis na mão, adentraram o supermercado. Imediatamente, os funcionários do estabelecimento entreolharam-se e um deles correu ao encontro delas. Dirigiram-se aos corredores de chocolates e ovos de Páscoa com o funcionário atrás, sombreando-lhes.

Acompanhei a movimentação à distância. As crianças discutiam e argumentavam entre si, aparentemente buscando um consenso a respeito da escolha dos chocolates. O funcionário observava tudo bem de perto, atento e impaciente. As crianças ignoravam-no como se esta fosse a situação mais trivial do mundo. Como se já lhes fosse familiar. Devia mesmo ser.

Dirigiram-se, pois, ao caixa. Duas barras de chocolate ao leite na mão da menina aparentemente mais velha. Um dos garotos correu até uma das prateleiras e voltou com um pacote de salgadinhos e os olhinhos brilhando. Mostrou à mais velha. Ela acenou que não, ele murchou. O pacote voltou à prateleira.

Começaram a discutir sobre o pagamento e nesse momento não pareciam mais crianças.

“Vai dar R$ 4,26. Sobram R$ 2,44, certo?”

“Isso.”

“Por que não podemos levar o salgadinho?”

“Temos que levar o resto do dinheiro para a mãe.”

“Mas ela vai receber hoje.”

“Mesmo assim”.

Alguns adultos não saberiam fazer essa conta. Alguns adultos teriam atitude menos sensata. A maioria dos adultos levaria o salgadinho... Ou uma garrafa de qualquer bebida alcoólica que coubesse no orçamento.

A minha experiência no supermercado estava me tornando extremamente deprimida. Presenciar aquela situação me apertou o coração e comecei a pensar no que comprar duas barras de chocolate ou um pacote de salgadinhos significava para mim. Nada. Para aquelas crianças, seria o grande acontecimento do dia, da semana talvez.

Basta, pensei. Elas não mereciam aquilo. Ao menos não ali, naquele momento, na minha frente. Peguei duas barras de chocolate da prateleira e o pacote de salgadinhos e coloquei-os entre meus itens de compra. Paguei, recolhi minhas sacolas e acenei para que viessem até mim.

Vieram, desconfiados. Entreguei-lhes os produtos e observei, aliviada, o sorriso que apareceu nos rostinhos judiados daqueles pequenos. A mais velha me agradeceu.


Sorri e fui saindo, ouvindo ao fundo risadas gostosas entremeadas por uma acalorada discussão sobre como seria feita a divisão das guloseimas. Começaram a correr com os chocolates na mão, brincando de pega pelo estacionamento. Felizmente eram, ainda e apesar de tudo, crianças.

terça-feira, 25 de março de 2008

A Lista

Em conversa com um amigo:

- Precisamos ir para Pocinhos do Rio Verde, é muito gostoso.

- Demorou. E Brotas.

- Brotas com certeza. Tem tanto lugar legal para conhecer aqui por perto.

- A gente devia fazer uma lista. É, uma lista de lugares para relaxarmos no final de semana. Sugeriu ele.

- Ótima idéia. Assim não esqueceremos dos lugares, afinal, são muitos.

Vale ressaltar aqui que a minha memória guarda uma grande semelhança com a memória de uma certa “peixa” hilária de um certo desenho também hilário chamada Dori. Para completar, a memória do meu amigo também não é lá um primor, daí a conveniência de uma lista. Até aí tudo bem. Olha só o que veio depois:

- Então está certo. Vamos fazer uma lista com todos os lugares para relaxar que estejam em um raio de 200 km daqui.

Comecei a ficar apreensiva, aquilo estava começando a soar um pouco regrado demais para pessoas que pretendiam justamente relaxar. Mal sabia eu...

- Mas não basta fazer a lista. Precisamos de metas.

Metas???? Pensei com meus botões debatendo-se em pânico.

- Metas para que mantenhamos uma boa freqüência de relaxamento. Senão, já viu, vamos ter uma lista enorme com lugares acumulados e vamos acabar viajando umas poucas vezes. Temos que equilibrar a lista com as viagens e acho que a melhor maneira de fazermos isso é colocando metas.

Pronto, para mim virou piada. Obviamente para ele (ainda) não. Pois bem.

- Sim, claro. Por que não? Resolvi colocar a ironia em campo e dar corda para enforcar rapidinho a famigerada lista.

- Podemos colocar metas e estipular punições. Sim, porque metas apenas não seriam suficientes. Imagine que não consigamos viajar na freqüência correta prevista para o relaxamento e descumpramos a meta. O que aconteceria? Nada. É necessário que paguemos um preço pela ausência de relaxamento. Podemos estipular algum tipo de multa, pecuniária ou não, que nos impeça de não relaxar.

Ele me olhou curioso, por um instante analisando a seriedade de minha observação. Até aquele ponto havia conseguido manter o sorriso na parte de dentro do meu corpo. Ao perceber a sua dúvida, não pude mais contê-lo e embarquei em uma gargalhada das boas.

Desistimos, obviamente, da idéia da lista bizarra e rimos compulsivamente do absurdo que havia consumido nossos últimos minutos de conversa.

Aquele riso, sim, havia sido relaxante. Bem mais do que a tal lista jamais seria.

Pensando bem, talvez devêssemos criar uma lista das gargalhadas que demos ao longo do dia, da semana, do mês. Uma lista indicando data, motivo, participantes e duração do riso, tudo isso em uma planilha, com médias, gráficos... Estou brincando, obviamente. Mas a idéia de uma relação de gargalhadas talvez não seja tão ruim assim. E nesse caso, uma meta mínima também não faria mal: ao menos uma boa gargalhada por dia. É relaxante, produz endorfinas, melhora a circulação, rejuvenesce e faz a vida muito mais divertida.

Somos expostos constantemente a potenciais geradores de gargalhadas. Não perca suas chances, cumpra rigorosamente a meta e, sempre que possível, exceda-a, gerando créditos que poderão ajudá-lo em tempos de escassez.

Viajar também ajuda. Pocinhos do Rio Verde e Brotas são duas boas opções. Havia outras, mas a Dori aqui esqueceu pois não fizemos uma lista.

segunda-feira, 24 de março de 2008

A Filosofia do "Paciência"

Na qualidade de economista, tive a oportunidade de conviver durante anos com um grande advogado. Trabalhamos juntos em inúmeros casos, viajamos, enfrentamos volumes e volumes de autos processuais, audiências em ministérios, reuniões cabeludíssimas, enfim, tudo que a vida profissional envolvendo assuntos jurídicos tem a honra de nos oferecer.

Na verdade essa vida me deixava louca.


Tenho plena consciência de que uma grandissíssima parte de minhas cãs decorre definitivamente de minhas peripécias por essa seara destrambelhada. Dias e noites ininterruptas de análises, planilhas, textos, prazos, clientes fora de controle... Tudo isso ainda tinha de ser conciliado com inúmeros outros compromissos pessoais diários, o que resultava em um dia-a-dia um tanto quanto... Insuportável.

Por vezes, um assunto se complicava de tal forma que não havia soluções disponíveis. Xeque-mate. Nesses casos, por mais avançada que fosse a capacidade de argumentação ou imaginação dos seres envolvidos, não existia simplesmente o que fazer. Preto no branco. E foi em uma dessas situações que aprendi uma das maiores lições de minha vida: a filosofia do “paciência”.

Fui apresentada a ela pelo grande doutor. Ele, do alto de sua sabedoria adquirida ao longo de décadas e décadas de circulação por este mundinho, desenvolveu uma técnica infalível que revolucionou toda a minha existência. Sua simplicidade é, porém, espantosa. Consiste, unicamente, em aceitar-se que, uma vez esgotadas todas as possibilidades, há que desprender-se de tudo e apenas dizer: “paciência”.

Pois bem, se a idéia é absolutamente simples, a sua aplicação para casos concretos definitivamente não o é. Foi esse, na verdade, o grande ensinamento do sábio doutor. Isso porque, nas situações mais estapafúrdias, em que qualquer ente do planeta estaria literalmente pirado, o magistrado apenas sentava-se em sua cadeira presidente, reclinava-se, fixava os olhos em mim e dizia... “Paciência”.

“Paciência, doutor?”

“Paciência.”


E pronto. Resolvitum est.

A situação se repetiu inúmeras vezes ao longo de anos, e eu, aluna dedicada, aprendi a lição. Confesso, porém, que mesmo após tanto tempo de observação e estudo, a aplicação de tal filosofia ainda me requer uma boa dose de concentração e esforço.

Nos casos mais simples, corriqueiros, a sua aplicação é quase automática, e um imbróglio que antes seria capaz de presentear-me com algumas dúzias de cabelos prateados, hoje não me aflige mais. Há casos, porém, em que por mais que busque em meu âmago a lição do mestre doutor, ainda não sou capaz de aplicar a filosofia. Paciência.

A sabedoria vem com o tempo, desde que se trilhe o caminho correto.

Sigo, pois, exercitando-me. O pedido não chegou a tempo? Paciência. A faxineira deu o cano? Paciência. Acabou a força e perdi tudo que havia escrito nas últimas 7 horas e meia? Paciência. O carro quebrou no meio do temporal e afundou na enxurrada? Filho da put... Paciência.

A relação de possibilidades para a aplicação da filosofia é infindável. Exercite-se. Um mundo novo se abrirá à sua frente e sua vida será muito, mas muito mais fácil. E não se zangue se não for capaz de aplicá-la de pronto. Anos e anos de costumes prévios terão de ser re-programados e isso não é das coisas mais simples.

Apenas lembre-se de que uma mera palavra balbuciada nos momentos certos ao longo da vida pode significar a diferença entre um enfarto precoce do miocárdio e uma velhice tranqüila a beira mar em Canoa Quebrada. E já que não encontrei um final melhor para este texto, ele acaba aqui, assim mesmo. Paciência.

quinta-feira, 20 de março de 2008

Valsando

Rosa Destorce Barulho I Prata Marrom Aroma I

Abre Encosta Força I Crocante Macio Separa I

Doce Mastiga Doce I Mastiga Doce Mistura I

Hummmmmmmmm I pausa de três tempos II

Abre Fecha Crocante I Macio Mastiga Doce I


Mastiga Doce Mistura I Hummmmmmmmm II

Da capo.

terça-feira, 18 de março de 2008

O Jardim

A minha rua tem um jardim bizarro no meio do nada. Digo bizarro porque ele é estranho mesmo, e digo no meio do nada porque ele não fica em casa nenhuma, aparentemente não pertencendo a ninguém.

Fica em uma pracinha numa encruzilhada, com flores de tipos e cores diversas, dispostas desordenadamente pelo espaço. Até aí, tudo bem. Apenas um jardineiro desorganizado.

Ocorre, porém, que as plantas amontodadas são entremeadas por faixas de cimento, como se fossem corredores de cemitério, e circundadas por muros pintados de rosa e branco em uma tentativa frustrada de simulação de tijolos à vista. Há também uma espécie de gazebo feito do mesmo material e com a mesma estampa, que abriga um varal e algumas cadeiras do tempo da vovó. No canto, há um altarzinho onde mora uma imagem de Nossa Senhora, com uma luz sinistra que às vezes se acende, imagino, para iluminar a vida da santa e dos seus seguidores.

Acompanho o desenvolvimento desse jardim já há algum tempo, desde antes que essa rua fosse minha. Sempre que passava por lá, o agrupamento estranho de plantas me chamava a atenção. Depois, os muros de cimento pintado como desenhos de criança e o estranho gazebo passaram a intrigar-me. O altar e os corredores tétricos completaram o cenário nonsense, e desde então, descobrir a identidade do responsável por tal obra surreal passou a fazer parte da minha lista de objetivos inúteis.

Sim, porque o jardim, ainda que de mal gosto, era obviamente cuidado. Uma instalação desse vulto não surge do nada, muito menos seria fruto da administração pública que, espero, jamais dedicaria nossos tostões a uma iniciativa tão inusitada.

Alguém, por incrível que pareça, tinha nesse jardim o seu projeto mais ambicioso. Uma pessoa, em algum lugar, dedicou horas e horas de sua vida à sua concepção, ao cultivo de suas plantas e à construção e decoração de suas edificações.

Os motivos que moveram o seu criador eram igualmente misteriosos para mim. Seria este um empreendimento movido por amor, uma vez que ladrilhar a rua com pedrinhas de brilhante seria demasiadamente custoso e ofuscaria a visão dos motoristas? Seria este um experimento com espécimes transgênicos, testados no mais inocente dos lugares para evitar fiscalizações e protestos de grupos de ambientalistas?

Durante anos, todas as vezes em que passava por ele, procurava em vão pelo ser que o cultivava. Por uma coincidência do destino, passei a morar nesta rua e, consequentemente, a avistar o jardim diariamente, em horários diurnos, noturnos e madrugais. Nunca, entretanto, encontrei o jardineiro dedicado.

Eis que em uma tarde de sábado, passeando pela praça, avistei, enfim, o responsável pelo meu objeto de estudo e contemplação: um senhorzinho já curvado, com cabelos brancos penteados de lado e uma calça de elástico já bastante gasta. Ele assoviava e, com uma pequena pá em mãos, observava, satisfeito, a sua criação.

Fui me aproximando, pé ante pé, curiosíssima, mas ao mesmo tempo cuidadosa para não espantá-lo. Eu me sentia como um observador de pássaros que finalmente avista um pica-pau-bico-de-marfim. E cheguei, sorrindo. Ele me viu, e sorriu. Pronto, o primeiro contato havia sido pacífico e bem sucedido.

- Boa tarde, senhor. Cuidando do jardim?

- Boa tarde, filha. Pois é. Você gosta?

Eu gostava do jardim? Àquela altura já não sabia mais. Ele era bizarro, sempre seria, mas eu já havia me acostumado com ele. Além disso, há coisas que não devem ser ditas e o senhorzinho não merecia ouvir outra resposta a não ser...

- Gosto, claro. É muito bom ter um jardim assim, no meio da cidade.

- Ele é da minha mulher, sabia?

- Não...achei que o senhor fosse o jardineiro.

- E sou. Na verdade é um presente para ela. Ela sempre quis ter um jardim.

- Puxa. Ela deve ter ficado muito feliz, o jardim é muito caprichado.

- Tenho certeza de que onde quer que esteja, ela está muito feliz. Sabe, filha, a vida é engraçada. Enquanto ela estava comigo, não pude criar esse presente pois tinha que cuidar dela. Agora que tenho o presente, ela não está mais comigo.

Não sabia o que dizer. Apenas sorri. Ele entendeu. E ficamos lá, observando as plantas, em um diálogo silencioso. Agora era fácil compreendê-lo.

Fiquei emocionada, confesso, observando aquele jardim como que pela primeira vez. Olhei as plantas, os muros, o gazebo e o altar sob uma nova perspectiva, e o que antes era apenas estranho, agora fazia sentido como parte de algo maior.

Aquele senhor havia dedicado o resto de sua vida a presentear alguém que não mais existia. Todos os detalhes, todas as idéias materializadas ali naquele jardim eram parte daquele presente. Um grande amor explicava, por fim, o meu mistério.

Nunca mais encontrei o jardineiro.

Passo ainda pelo jardim todos os dias, mas agora observo com carinho a sua estranheza. Sim, porque estranho, ele sempre será, mas não fazemos mesmo as coisas mais estranhas por amor?

segunda-feira, 17 de março de 2008

Dia de Maria

Mais uma do fundo do baú. Vale mencionar que esta música foi escrita antes do seriado existir...


Maria e o morro, o morro e Maria
Maria e a roupa, sabão, água fria
O filho com fome, a bolsa vazia
O rosto marcado, é dia Maria.

Maria e a lua, a lua e Maria
Maria cansada, a louça na pia
O frio do barraco, a melancolia
Marido no bar, é noite Maria.

Maria e o teto, o teto e Maria
Maria sem sono e a porta rangia
O cheiro de álcool, o vulto surgia
Já não como antes, é tarde Maria.

Maria é a vida, é a vida Maria
Mas há esperança que ainda te guia
O neto virá, carnaval, a folia
O fim da novela, o futuro Maria.

Dormindo, acordando, sempre Maria
Vivendo sua vida já sem fantasia
Sendo quem é qualquer um amaria
De noite, de dia, todo dia de Maria

sábado, 15 de março de 2008

Sorriso

Hoje só quero falar do sorriso da minha sobrinha.

Sabe aquele sorriso rosinha, de gengiva sem dentinhos, que vem acompanhado de bracinhos e perninhas gorduchos se agitando e de um brilho de felicidade em dois globinhos inocentes? Hoje me perdi nesse sorriso.

Foi paixão à primeira vista, daquelas brabas, e desde o primeiro momento em que o vi me tornei obcecada por provocá-lo. Isso porque presenciá-lo apenas é um privilégio, mas ser a razão de sua existência é uma sensação indescritível. E vicia.

Passei horas entre brrrrrusss e atireiopaunogatos, e cócegas e brinquedos, na busca por aquele sorriso. E ele apareceu. Uma, duas, inúmeras vezes, até nos tornarmos amigos. Bons amigos. Veio, ainda, acompanhado de sons da língua dos bebês, inimagináveis, que alimentaram o meu próprio riso e transformaram o dia em algo que nunca teria sido se eu tivesse dado ouvidos aos chamados do mundo dos adultos.

Hoje, mais do que nunca apaixonada por aquela coisinha minúscula, rechonchuda e risonha, digo sem titubear: deixe-se perder no sorriso de uma criança. Permita-se levar pelas brincadeiras descompromissadas e renove suas energias no brilho daqueles olhinhos. Pause sua vida por alguns minutos e você se sentirá completamente realizado apenas por ter feito aquele serzinho feliz.

quinta-feira, 13 de março de 2008

Impulse

Sabe aquela história do comercial de desodorante: “se um desconhecido de repente lhe oferecer flores...”?

Pois bem, estava eu despretensiosamente passeando com o meu cachorrinho em uma manhã ensolarada, quando vi um carro estacionar bruscamente do outro lado da rua. A porta do motorista se abriu e um rapaz que eu nunca havia visto mais gordo na vida veio em minha direção.

Rapidamente pensei: Jesus, o que será que esse sujeito está fazendo vindo como louco para cá? Será um ladrão, um estuprador necessitado, veio cobrar alguma dívida que eu não sei que tenho, está louco por alguma informação do bairro, está passando mal e precisa de ajuda, me confundiu com uma amiga de infância???

E veio chegando perto e eu pirando nas possibilidades... E chegou. Gatinho, até.

E disse: “Eu sempre passo por aqui e te vejo passeando com o cachorrinho, mas hoje eu não agüentei e precisava te dizer – eu acho você linda!”.

Respirei um pouco aliviada (mas ainda não completamente, pois imagino que maníacos homicidas também saibam ser galanteadores), dei uma risadinha sem graça e, sem saber muito bem o que responder, agradeci. E ele continuou dizendo alguns elogios até cair no lugar comum: “você é casada?”.

Respondi que não, mas que era comprometida e ele baixou a cabeça e balbuciou algo como um “que pena”. Imediatamente, pediu-me para esperar um pouco, correu para o carro e voltou com um pedaço de papel: “Para quando você não for mais. Me liga”. E sumiu tão instantaneamente como chegou, me deixando oito dígitos e sem sequer me dizer o seu nome.

Eu estava usando um desodorante, lógico, mas juro que não era o tal milagroso que provoca impulsos dessa natureza. Até porque o fulano estava passando de carro, e teria feito o que fez mesmo se eu estivesse usando essência de ratão do banhado.

Eu definitivamente tinha um motivo para continuar o meu passeio toda-toda. E continuei, praticamente desfilando para as árvores, os pedreiros e os paralelepípedos. Aquele encontro relâmpago havia sido uma dose instantânea de inflador de egos e o meu estava, naquele momento, demasiadamente convencido. E assim permaneceu por um bom tempo.

Cheguei em casa, tomei um banho de Cleópatra, coloquei uma roupa caprichada e fui trabalhar, me achando, até que os pepinos do dia me absorveram. Mas a sensação continuou.

Nunca sabemos quem ou o quê vamos encontrar no mais banal dos lugares, não é mesmo? Por via das dúvidas, use sempre um bom desodorante.

terça-feira, 11 de março de 2008

No Elevador

Chovia lá fora. Abri a porta do elevador. Entrei. Uma mulher usando o uniforme de funcionária de um grande hospital da cidade estava lá dentro, demasiadamente próxima ao painel do aparelho, com uma feição assustada, a portinha do comunicador de emergência aberta e a mão direita estacionada sobre o fone.

Que estranho, pensei. “Boa noite”, disse.

Ela: “boa noite”.

Parecia bem nervosa. Logo descobri que realmente estava: “Já deixei a porta do interfone aberta para o caso de acabar a força. Sabe como é quando chove...”, e finalizou a frase com um risinho histérico.

A mulher é doida, pensei. “Não se preocupe, moro aqui há um bom tempo e isso nunca me aconteceu”, disse, finalizando a frase com um sorriso calmante.

Ela: “Nunca se sabe, são muitos andares até lá em cima”.

Eu: “Ah, mas passa rápido”.

Ela: “Passa nada. Você sabia que dá para rezar dois Pais-nossos e uma Ave-Maria antes de chegar lá?”. Outro risinho histérico.

Paranóica é pouco. Isso que é medo de elevador, a mulher reza dois Pais-nossos e uma Ave-Maria toda vez que vai subir ou descer?, pensei. “Jura? Não sabia...”, disse.

Ela: “Ave-Maria, não, Glória ao Pai.”

Ãh?, pensei. “Ah...”, disse.

“Você é católica?”, perguntou.

Eu: “Não...”.

Ela: “Ah...”.

O elevador parou, são e salvo, em nosso andar. Saímos as duas, lados opostos, “boa noite”.

Entrei em casa pensando em como alguém poderia ter tanto medo de uma coisa tão normal. Entrar no elevador é para mim tão assustador quanto beber um copo de água, chova ou faça sol. Será que ela já ficou presa por horas, sem ar, dentro do cubículo de transporte vertical? Será que ela já testemunhou a chegada ao pronto-socorro de vítimas de um terrível acidente de elevador? Será ela claustrofóbica?

Meus medos são poucos e de intensidade proporcional à probabilidade calculada de que algo realmente ruim aconteça. Quais as chances de ficarmos presas no elevador? Razoavelmente baixas. Qual a probabilidade de que uma eventual queda de energia dure mais do que alguns minutos? Pequena. Qual a possibilidade de que algo efetivamente perigoso aconteça enquanto estivermos hipoteticamente presas dentro do elevador? Praticamente nula. Resultado: calma.

A propensão de certas pessoas a esperarem pelo pior realmente me espanta. A vida deve ser muito mais difícil assim.

Me espanta também o fato de ser possível rezar as três orações enquanto o elevador sobe treze andares. Checarei isso da próxima vez em que for usar o elevador. Agora me dê licença que preciso decorar o Glória ao Pai.

quinta-feira, 6 de março de 2008

Margarida

Hoje fiquei sabendo que a Margarida morreu.

Não se engane, não se trata de nada relacionado a jardinagem.

Margarida era uma grande amiga dos meus pais, daquelas de encontros de casais, jantares, aniversários de criança. Eles se conheciam desde os tempos da faculdade. Uma daquelas raras amizades que carregamos conosco, que duram, que ficam.

Me lembro de inúmeras festas na casa da Margarida. Quando eu era pequena, naquela idade em que achamos que qualquer programa é a melhor coisa do mundo e que ficar em casa é uma perda total de tempo, eu adorava quando chegava da escola e meus pais diziam “hoje tem festa na casa da Margarida”. Isso significava encontrar outras crianças, me empanturrar de um monte de salgadinhos, tomar refrigerante (minha mãe sabiamente sempre regulou ao máximo o refrigerante) e assistir televisão até tarde. Ou seja, o paraíso.

As lembranças são muitas. Me lembro das brincadeiras, da disposição dos cômodos, da cor do carpete, dos gato-mias...Me lembro até de assistir à estréia do clip do Raul Seixas na TV da Margarida.

Com o passar dos anos, os programas por lá deixaram de apresentar atrativo para mim. Os interesses de uma adolescente passaram para trás os deleites gastronômicos e lúdicos daquele lugar e fizeram com que eu trocasse tais eventos por outros mais, digamos, promissores.

Poucas vezes voltei àquela casa. Poucas vezes revi a Margarida. Apesar disso, ela seguia comigo de alguma forma, todas as vezes em que eu recebia uma notícia sua: “A Margarida mudou para outra cidade, a Margarida arrumou tal emprego, o filho da Margarida entrou na faculdade...”. Seguia como seguem conosco os personagens distantes estampados nos jornais todos os dias, até que me disseram: “A Margarida morreu”.

Margarida não fazia mais parte da minha vida, não constava da minha agenda, não fazia mais aniversários, não era uma lembrança presente. Ela ficava lá, no passado, e aparecia muito raramente quando os devaneios familiares se embrenhavam pelos idos em que convivíamos. Mas ela estava lá, e era bom saber que em algum lugar existia a Margarida. Não existe mais.

Por incrível que pareça, e isso foi uma surpresa para mim, a partida dela deixou um estranho buraco, levou um pedaço esquecido que eu nem sabia mais que existia em mim. É como se uma parte da minha infância tivesse ido com ela. E doeu.

Sempre acreditei sermos formados pela soma do que guardamos de todas as pessoas que significaram ou significam algo de importante para nós, como uma colcha de retalhos. Hoje a responsável por um retalhinho colorido da minha colcha desapareceu, mas de alguma forma continuará por perto já que a colcha permanecerá.

Extra-ordinário

É incrível como um pequeno detalhe, um acontecimento minúsculo pode dar cor a um dia aparentemente comum, ordinário. Nada me lembraria o dia de hoje se não fosse pela ação sui generis de uma desconhecida no mais inesperado dos lugares.

Pois bem. Estava eu na fila do caixa de uma grande rede varejista norte-americana, aguardando a minha vez de contribuir para o recheio dos cofres do estabelecimento. Passei meus produtos que foram, um a um, devidamente registrados pela atendente.

“Forma de pagamento? Cartão, por favor. Pois não.” Muitos plecs de impressora depois, eis que surge a fita de cobrança que comprovaria a minha indubitável presença naquele momento de troca mercantil.

Ela: “Aqui está. Assine, por favor.” E então, sem titubear, sem pensar sequer meia vez, como se fosse a coisa mais normal e corriqueira do mundo, ela puxou faceiramente e sem a menor cerimônia uma Bic preta que estava, vejam só, no seu coque gigantesco. Sem nada dizer, me estendeu a mão com o objeto que naquele exato momento, eu torcia para não estar inteiramente repleto de sebo capilar... Tomei-o de sua mão, na maior normalidade aparente do mundo, e rabisquei rapidamente alguns traços no papel, que o banco, obviamente, nunca chegará a considerar.

Por dentro eu era só gargalhadas. Um sorriso me escapou assim que saí da loja, e foi crescendo, ganhando corpo, e me acompanhou até em casa, onde cheguei, lavei as mãos, e, ainda rindo, comecei a escrever.

Ah, as diferenças! E que graça teriam nossos dias se, o que para mim parece impensável, não fosse tão normal para outros? Muito mais prazerosa a vida dessa forma, pois somente tais particularidades possibilitam que abramos os olhos diariamente e pensemos: que surpresas, sebosas ou não, o dia me reservará?

quarta-feira, 5 de março de 2008

Quando Chove

Diretamente do fundo do baú...

Quando Chove

Quando chove como hoje
A música em meu peito quer sair a todo custo
Ganhar o mundo em outras bocas como tu fizeste um dia.

Quando chove como hoje
Minha alma dilacera com momentos de outra vida
Cai no chão e se esvaece como a água em corredeira.

Quando chove como agora
Chovo junto vou me embora
Só não leva a chuva afora
Minhas dores nessa hora

Quando chove como hoje
Perco o rumo que me resta e teu rosto me acompanha
Não me vejo, não me sinto, sou vulto, sou lembrança.

Quando chove como hoje
Dói no peito feito bala o que um dia foi tão doce
E o que fica é simplesmente o inevitável temporal.

Quando chove como agora
Chovo junto vou me embora
Só não leva a chuva afora
Minhas dores nessa hora

Ultra-som

Hoje fui fazer um ultra-som, e não me pergunte de quê, pois a parte de minha anatomia que seria devassada em seu âmago não vem ao caso, nem contribui para o desenrolar da história. Pois bem, estava eu semi-nua, coberta nas partes que interessam por um papelzinho desses de secar frituras, deitada na maca da clínica, quando comecei a me dar conta de um sentimento estranho dentro de mim. Calma, o ultra-som não havia começado ainda e, não, não era esse “tipo” de ultra-som.

O sentimento não era físico. Nada externo me infligia aquela sensação que me cutucava o peito, como uma mistura de ansiedade, com um toque de medinho, razoavelmente compensado por uma confiança duvidosa.

Dei corda para o sentimento e sintonizei minha mente para que ela se inteirasse do que estava acontecendo, involuntariamente, dentro da minha caixa torácica. Percebi então que se tratava da ansiedade natural dos seres humanos quando se encontram diante da possibilidade de que suas vidas estejam ameaçadas. Por Deus, eu não tinha nenhuma doença pré-existente, não estava nas últimas nem nada que o valha (três batidas firmes na madeira...). Ao contrário, a minha saúde física encontrava-se em perfeito estado e, na verdade, o grande causador daquela sensação era o fato de que o resultado daquele exame iminente poderia vir a alterar toda essa tranqüilidade.

O ponto é que eu me encontrava diante de um potencial divisor de águas. Minha confiança e minha parte racional, que em geral se sobrepõe fortemente a todas as demais facetas da minha personalidade, me diziam que não havia motivos para preocupações, que tudo estaria dentro da normalidade e que aquele seria mais um, dentre os incontáveis e já esquecidos, exames que eu havia feito durante a minha existência. Entretanto, a mera possibilidade de que algo não estivesse bem, de que meu corpo estivesse de alguma maneira ameaçado pela ação incontrolável do acaso, era suficiente para provocar aquela apreensão que naquele momento me incomodava.

Ali, deitada, esperando a chegada do simpático doutor (que por sinal estava demorando um pouco demais...), eu me dei conta de que, dependendo dos acontecimentos dos próximos minutos, esse poderia ser um dia como outro qualquer, ou poderia se tornar o dia mais assustador da minha vida.

Comecei então a divagar sobre as pessoas que efetivamente passaram por essa experiência, que receberam repentinamente a notícia de que sofriam de um mal grave, possivelmente incurável, e me dei conta do quão devastadora deve ser tal sensação. Pensei também nas pessoas que se valem de uma descoberta como esta para tomarem atitudes, mudarem de vida, transformarem suas prioridades, a ponto de dizerem depois de algum tempo que, ironicamente, a descoberta de tal ou qual doença teria sido a melhor coisa que lhes teria acontecido em toda a sua vida. Impossível não me questionar: qual seria a minha reação? Eu teria uma atitude tão positiva? Eu mudaria de vida?

E devo confessar que imediatamente me senti um pouco patética. Chega a ser ridículo pensar que precisamos receber uma notícia devastadora (a famosa sensação da água batendo nas nádegas) para tomarmos atitudes que gostaríamos de tomar e que simplesmente adiamos indefinidamente por falta de coragem, por preguiça, por comodismo ou por qualquer outra força misteriosa que nos impeça de sermos verdadeiramente felizes.

Que mania é essa que nos domina, de colocarmos nossas vidas em banho-maria, esperando que algo (possivelmente ruim) aconteça para que comecemos a viver? Ora, esse “algo” poderá nunca acontecer, e o melhor de tudo é percebermos que o tal “algo” não precisa acontecer, ao menos não externamente. Nós mesmos, em decisão solo, podemos determinar o momento de surgimento do nosso “algo”, e assim alterarmos a nosso bel prazer o curso de nossas vidas, bastando para tanto a mera percepção da dotação de tal poder.

No auge de tal reflexão, o já citado simpático doutor adentrou o recinto e, após algumas piadinhas polidas para quebrar o gelo, fez o que tinha de fazer e me deu o veredicto: tudo estava dentro da mais completa normalidade. Não que eu esteja reclamando, longe de mim (mais três batidas na madeira), mas não seria hoje o meu divisor de águas. O meu “algo” não havia acontecido, ao menos não por forças externas, e eu teria novamente a chance de fazer por meus próprios meios o meu “algo” surgir. O que eu farei com essa chance só o tempo dirá. E você, deixará que façam “algo” que você poderia e deveria fazer por si mesmo?

O Retorno

Há muito que não escrevo nada...

Nada que realmente possa ser considerado “escrever”.

Coloco coisas no papel, é verdade. Listas, lembretes, números... E só, porque parece que não sabemos mais escrever coisas à moda antiga. Agora tudo vira multimídia e nossos dedos se acostumaram a martelar teclinhas muito mais rápido do que nossos punhos podem rebolar para girar as esferas com tinta.

Por isso mesmo, no computador registro coisas um pouco mais elaboradas. Digito mensagens, scraps, planilhas, cartas, faxes, e mais listas, lembretes, números...

E só. O muito do dia-a-dia preencheu de tal forma o tempo que nada mais significativo, prazeroso ou reflexivo achou seu caminho para fora de mim.

Há anos que não escrevo nada. É uma pena, pois escrever costumava me fazer muito bem. Terapia grátis, profunda, por vezes dolorida, mas sempre muito eficaz.

É incrível como nos esquecemos do bem que uma boa conversa com nossos botões pode nos fazer. Absortos em nossa teia de afazeres rotineiros e de emergências sem importância, deixamos de nos perguntar as questões que realmente podem fazer alguma diferença em nossas jornadas. Deixamos de refletir, de criar. Limitamo-nos a resolver, a apagar incêndios, até que um belo dia nos damos conta de que há muito que não escrevemos nada...

Decidi, hoje, mudar essa dinâmica. Espero que o muito do dia-a-dia não me tome de pronto essa resolução. Espero que as questões não resolvidas dentro de mim falem alto o suficiente para que eu as ouça, as considere, pondere, cuspa reflexões e não me contente em ser menos do que eu espero de mim.

Espero escrever muito, pois uma palavra escrita traz consigo milhares de pensamentos prévios vasculhados, combinados e organizados em forma de caracteres ocidentais, que assim poderão ser vasculhados, combinados, organizados e complementados por outrem.


Escrever, e o pensar que o acompanha, valoriza o humano, o pulsante, o insatisfeito e o curioso em mim, e faz do outro, aliado na busca sem fim pelo entendimento do impossível.