domingo, 31 de maio de 2009

Vertigem

Paro. Olho à frente e duas luzes brancas fortes se cruzam na minha direção.

Meus olhos embaçam e eu foco nas palavras já tão familiares circulando pelo espaço.

Um calor aconchegante nas minhas costas, nuca, quadris me chama a atenção e é só ele que sinto por alguns instantes. Arrepio pelo contraste da pele nua e fria com o quente que de repente me circunda.

Uma garrafa de vinho contra a luz. Reflexos de luzes brancas e negras em arames retorcidos. Uma rosa vermelha na penumbra.

Uma grande sombra alongada escorre pelo tapete vermelho aos meus pés e se movimenta, braços abertos traduzindo em dança as tais palavras familiares.

Vertigem.

Sumo. Uma sensação de dormência, tontura, queda. Todas as noites. A pausa do corpo e o foco nos estímulos me abrem os poros. Vulnerável, sinto que vou desmaiar, cair ali mesmo no palco, interrompendo a cena, fazendo-a diferente.

Não sei, não explico. Só sinto e reproduzo aqui a sensação, que assim como chega, some no ar, a ação da cena me chamando e diluindo tudo.

Até a próxima noite.

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Lama

É pau, é pedra. Quando eu achava que seria o fim do caminho.... “Ju, precisa comprar mais selador XYW e oito sacos de rejunte grafite flexível”. Incrível como os meus pedreiros pidonchos ficam íntimos rapidinho. Infelizmente essa é a única coisa que tem acontecido rapidinho nessa obra.

Caraca. Como é que cabe tanto rejunte em um lugar tão pequeno? Aquilo tudo dava para rejuntar o saguão do Itamaraty.

A obra começou em março e naquela época eu achava que não duraria mais do que uns 20 dias. Um mês no máximo.

Há-há. Tolinha. Eu e esse meu otimismo besta.

Nunca vi coisa mais encalacrada do que essa reforminha mequetrefe. Quem olha pensa: “ah Ju, é simples, o lugar é pequeno, é só impermeabilizar, trocar o piso e colocar a banheira.” Sim fofa, só isso. O problema é que Murphy me ama e quase tudo o que poderia dar errado, deu. Menos o piso cair no andar de baixo mas calma que a reforma ainda não terminou e vai saber, né?

Há mais de dois meses são três, quatro, cinco guarda-roupas suados me acordando às 7 e meia da matina, entrando e saindo, subindo, descendo e deixando rastros poeirentos à base de metros cúbicos de café preto muito, muito doce. É pau, pedra, tijolo chegando, resto de toco, caco de vidro queira ou não queira, chuva chovendo, mistério profundo, fundo do poço e no rosto um desgosto. É a lama. É a lama.

Quando a reforma do maestro demorou mais do que devia, ele foi lá e colocou no mundo Águas de Março. Isso é que é fazer a famosa limonada. Como eu sou só euzinha mesmo, peguei o limão e coloquei no mundo essa postagem indignada e um monte de risos incrédulos a cada pipoco da obra interminável. O que é que eu vou fazer?

Eu ouço Águas de Março e penso que isso acontece com todo mundo.

Um dia, se Deus quiser antes de março de 2010, tudo vai estar prontinho, limpo, sem areia, sem cimento, sem resina, sem rejunte, sem guarda-roupas suados. Só a minha churrasqueira cheia de comida boa, a vista mais linda da cidade, a hidro quentinha borbulhando essências energizantes e amigos queridos, ouvindo Tom.

quinta-feira, 21 de maio de 2009

Dona Cida

- Bom dia dona Cida.

- Bom dia filha. Tudo bem? Hoje eu vou ter que passear rápido com a Mel porque o almoço vai ter que sair mais cedo.

- Ah...

- É, a minha filha pediu. É todo o dia na mesma hora mas hoje vai ter que ser mais cedo. Que coisa né?

- O quê Dona Cida?


- Isso de tudo ser na mesma hora todo dia. Com você é assim também?

Eu ri. Vixe. Se ela soubesse...

- Que nada Dona Cida. A minha vida é uma doideira.

- Mesmo? O que é mesmo que você faz? É médica, professora?


Como é que eu vou explicar....

- Não, não. Eu sou formada em economia mas na verdade sou dona de bar, fotógrafa, bailarina, faço teatro...

O rosto enrugado e sisudo dela mudou de cor, os olhos brilharam. Pela primeira vez os olhos dela me chamaram a atenção e os dentes apareceram de verdade.

- Mesmo? Que linda! Você dança.... Eu também sou bailarina [atentem para o tempo verbal]. Danço de tudo. Menos tango. Ai menina, sabe que eu arraso na pista? As minhas filhas têm até ciúme de mim. O meu sonho era ter uma academia de dança mas agora né, nessa idade...

Quem diria... Nunca imaginei a Dona Cida num vestido rodopiando pelo salão.

- Já dancei tanto nos bailes por aí. E o Rei Cone? Que paixão! Quando tocava o Rei Cone meu coração pulava que parecia que ia explodir.

Rei Cone....

- Jura Dona Cida?

- Minha Nossa Senhora. Era tão bonito. Às vezes eu ainda danço mas não é mais a mesma coisa. Na época do Rei Cone os moços usavam até lenço de tecido na mão para não sujar a mão da dama.


O mundo muda, gente. Como muda.

- O mundo muda né minha filha? Parece que foi ontem. Já passei por tanta coisa.

Ela já tinha esquecido que o almoço teria que sair mais cedo e estava toda falante. Eu deixei prá lá a pressa. Estava adorando conhecer mesmo a Dona Cida pela primeira vez.

- Sabe que o meu marido dançava muito bem? Fomos casados por 35 anos até ele virar amante da minha colega.

Sobrancelhas arqueadas, encorajando o desenrolar da história.

- É, pediu o desquite e tudo. Fomos lá, na frente do juiz. Fiquei tão nervosa que pedi para beber a água do copo do juiz. Prá quê desquitar? Me fala. A gente nem dormia mais na mesma cama. Ele que ficasse com a colega na casa dela, eu arrumava um “amigo” para mim e estava tudo certo. Besteira essa coisa de desquitar naquela idade. Quatro filhos criados, neto, bisneto. Mas ele quis mesmo assim.

Moderna a Dona Cida. Prática. Balancei a cabeça pensativa, interessada.

- A tal colega era minha amiga mesmo. Freqüentava a minha casa, comia da minha comida. Até reunião de Tumpeuér [Tupperware] ela fez com as minhas amigas. Gente é gente, né?

Gente é gente, Dona Cida.

- Mas tem gentes e gentes né Dona Cida?

- Se tem... Sabe que no fim ele voltou para casa? A outra lá mandou ele embora porque disse que ele sujava muito a toalha de rosto dela.


Ela riu.

- Ele morreu de repente no meu banheiro. Enfarte.

Cara de susto.

- Outro dia me mandou uma carta na sessão de mesa branca pedindo perdão, dizendo que me amava. Eu gostei. Já a outra lá tá toda só. Acredita que ela ainda me liga às vezes? Fala dele, pergunta se pode ir em casa. Uma coisa.


Eu sorri. O que é que eu vou dizer depois de uma história dessas?

- Nossa, eu preciso ir filha. O almoço precisa sair mais cedo hoje. Depois a gente conversa mais. Vamos Mel, vamos.

E foi. Devagar. Ela e a beagle já velhinha. Velhinhas. Cheias de histórias para contar.

Como é que eu encontrava a Dona Cida todos os dias e não conhecia essa mulher? Ela precisa tanto falar e eu adoro ouvir. Adoro. Maldita pressa que faz a gente passar voando pelas coisas e pelas pessoas, impedindo que saibamos do “Rei Cone”, da paixão da Dona Cida pela dança, dos lenços de tecido nas mãos dos rapazes, da história de amor dessas mulheres, dos motivos daquelas rugas e daqueles olhos sisudos.


Ainda bem que hoje eu parei para ouvir.

sexta-feira, 15 de maio de 2009

Desconexão

Falávamos de desconexão.

Eu sempre me pego prestando atenção nas pessoas ao redor. Às vezes eu exagero e quem está comigo pergunta: conhece? Não, não conheço, mas tem horas em que eu tenho muita vontade de conhecer. Algumas pessoas me intrigam tanto...

Vocês já repararam na quantidade de casais que saem para jantar e que passam a noite toda sozinhos, monologando, olhos virados para dentro?

A outra pessoa está ali, os dois estão ali fisicamente juntos por espontânea vontade mas não há qualquer conexão. Como assim? Tá, pode até ser que o dia deles tenha sido ruim, que a fase esteja estranha, que alguma coisa terrível tenha acontecido, mas o que eu vejo na maioria das vezes é um tédio gigantesco pairando ao redor e um total desinteresse pela pessoa sentada ali, do outro lado das comidas.

Agora me explica prá quê. Prá quê? Que relações são essas?

Estar junto não é nada disso. Isso é dizer que está, isso é preencher casado na ficha do clube e dividir o custo do plano de saúde.

Estar junto é uma coisa totalmente outra. É sair para jantar querendo muito estar ali, olhando no olho, mirando na alma, conversando sobre tudo, sobre o dia, sobre o filme novo do Almodóvar, sobre a gripe suína, a festa dos 90 anos da vovó, o sentido da vida, o aperto no peito. Estar junto é perguntar querendo mesmo saber. É se divertir fazendo compra de produto de limpeza no supermercado segunda-feira à noite, morrendo de rir, e chegar em casa doido para dormir de conchinha.

Estar junto é se sentir sempre menos só, muito menos só.

Eu sei que isso tudo pode soar muito besta e que parece álbum do Amar é, mas o que eu posso fazer se é isso mesmo?


E se não for assim é melhor que não seja.

Estar junto, junto mesmo, faz todo o resto muito mais divertido e não tem nada a ver com essa coisa que as pessoas fazem solitárias em pares nos restaurantes por aí.

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Razão

Para o que é que a gente está aqui, afinal?

Qual o sentido de perambular por essa terrinha anos a fio buscando incansavelmente algo que a gente não tem a menor idéia do que seja?

Essa nossa existência minúscula e passageira tem, no fim das contas, algum sentido?

Tá, eu sei que os homens se fazem essa pergunta desde que o mundo é mundo e eu sei que não tem um serzinho pensante nesse planeta que não tenha parado para matutar sobre isso alguma vez na vida. Eu sei também que ninguém, nem as mentes mais brilhantes que já passaram por aqui, conseguiram responder realmente a isso, o que não quer dizer que eu não possa gastar os meus miolinhos e umas linhas do blog com isso, né?

É muito, muito doido como os acontecimentos da vida te trazem invariavelmente reflexões e questionamentos que te envolvem, te chacoalham e te transformam. Os acontecimentos são, na verdade, catalisadores das sacadas individuais e das mudanças interiores que surgem depois, se (e somente se) você se permitir parar e pensar.

Talvez a resposta esteja mesmo na busca pela resposta. No matutar, no tatear, no sentir de olhos vendados. Talvez a resposta seja a busca e só.

Talvez o único sentido seja mesmo sentir, contraditoriamente livres da racionalidade que se faz de nossa maior virtude e no entanto, provocando uma infinidade de comos e porquês, se coloca sempre entre nós e a plena realização e a felicidade.

Aproveitar a viagem, acumulando experiências, sensações, tocando, colorindo outros, e terminar a vida lá no fim do caminho como mosaico único de todos os retalhos absorvidos, processados e transformados dentro desse ser que começou pequenininho, tela em branco igual a todas as outras, e terminou tão diferente de tudo, parece ser, afinal, a única razão de estarmos aqui.

E só.

quarta-feira, 13 de maio de 2009

Pão de Queijo

O melhor pão de queijo do mundo foi devorado por mim ontem.

Tá, eu estava com uma fome de atordoar as idéias e isso deve ter ajudado um pouco, mas que o quitute era bom, ah isso era.

Acordei cedo e saí para o dia porque o dia seria cheio, nada de comida em casa porque os dias em geral têm sido cheios e nem tempo de ir ao supermercado eu tenho tido. Quase hora de almoçar e nada de comida na minha barriguinha. Eu já estava pirando.

Acordo com uma fome danada, de comida inclusive, e o dia não começa para mim enquanto os meus dentinhos não se deleitam com alguma coisa fofa e melecada com derivados de leite.


Atrasadíssima, para variar, encostei na padaria e avistei o pão de queijo que para a minha completa satisfação era enorme, três vezes maior que os seus irmãozinhos normais. Um pão de queijo e um Toddynho, por favor. Pão de queijo e Toddynho eram tudo o que eu queria naquele momento da minha vida.

E então eu mordi. Sabe quando você se surpreende com a mordida, quando ela supera e muito as suas expectativas? Pois é gente, que coisa boa. Casquinha crocante no ponto certo, não daquelas que machucam o céu da boca, recheio macio no ponto certo, não daqueles que grudam no dente. Salgadinho, cheiroso e ENORME. Essa maravilha tupiniquim combinada com o leitinho achocolatado fizeram a minha alegria completa naquele momento... Eu suspirava e ria sozinha dentro do carro.

Gostei tanto do pão de queijo que resolvi registrar aqui e divulgar a fonte: padaria Nico, balão do Castelo em Campinas. Recomendo super.

Pequenos prazeres fazem toda a diferença nesses dias de correria sem fim. Na verdade fazem toda a diferença sempre. Fáceis, rápidos, passageiros. Prazeirosíssimos.

terça-feira, 12 de maio de 2009

Larinha 1.5

Faz muito tempo que eu não falo da minha sobrinha por aqui e hoje eu preciso falar porque não existe, atualmente, coisa mais doce e linda no mundo do que ela.

Sim, vai ser um post de corujice. Me deixa.

Dia das mães, família reunida depois do almoço na varanda da casa dos meus pais. Uma mãozinha gorducha me cutuca e me puxa para a sala para depois escapulir e ir parar, dedinho esticado, na frente da TV que exibia o menu de Cantigas de Roda 3.

- Bu, bu...bu.

- Oi Lalazinha, você quer que eu ligue o DVD?

- Bu, bu.
Não, ela quer conversar sobre a epidemia de gripe suína. Dêêêr.

Aperto "iniciar filme" e músicas infantis mais antigas do que eu começam a soar, acompanhadas de imagens engraçadinhas de fantoches, desenhos, animais.

Sento no chão cantando junto e a pequena vem chegando, chegando, até sentar no meu colo de mansinho, mãozinhas nas minhas e os olhos vidrados na TV. A gente ficou assim por muito tempo, ela sem piscar de tanto interesse pelos bichinhos, e eu piscando mais do que o normal para segurar a onda desses meus olhos derretidos que insistem em se derramar em situações assim especiais.

Eu não queria mais parar de olhar para aqueles olhinhos brilhantes enormes e castanhos como os meus. Dizem que a gente se parece muito e sabem que é mesmo verdade. Ela é a cara daquela Juzinha que aparece nas fotos amareladas dos meus álbuns de bebê e é uma delícia se reconhecer assim, em um pedacinho de você que anda, fala, ri sem parar e faz farra por aí.

As músicas iam e vinham e eu só queria ficar ali, eu só queria que ela não cansasse tão rápido como as crianças costumam se cansar e que continuasse no meu colo, mãozinhas nas minhas, só saindo para se juntar, lindas, aplaudindo cada música que acabava e provocava um risinho maroto e doce na minha direção.

Ela está crescendo tão rápido e eu estou perdendo tanta coisa. Besteira dizer que eu vou me arrepender porque na verdade eu não vou, eu já me arrependo hoje mesmo. A gente entope a vida de coisas e deixa as essenciais para depois, só que esse depois... Vai saber.

Pois então que tudo pare. Hoje eu só quero olhar para aqueles olhinhos tão iguais aos meus.

quarta-feira, 6 de maio de 2009

As fotos que eu não tirei

Uma rua à meia luz. Um carrinho de catar sucata cheio de madeiras, papéis, sucata. Uma criança por perto, quieta, monocromática como a sucata, o carrinho e a rua. De destoante só o rosa de um cordão de balões de aniversário que passava pelo topo do carrinho e terminava nas mãos da criança, vidrada na leveza dos balões.

Uma cena em P&B focalizado ali pronta, inteira na minha frente praticamente gritando para que eu apertasse o botão e não deixasse ela ir embora de vez.

Para o meu desespero resolvi sair sem a câmera naquela noite e a foto só existe na minha cabeça. E como existe. Não vai embora a danada, vive voltando, indo e vindo, tudo culpa dos olhinhos daquela criança monotom espelhando o rosa dos balões. Um lampejo de infância que merecia continuar existindo em outro lugar que não só o meu interior e o dela.

Aquele momento merecia ser uma foto. Aquele momento era uma foto. Linda. Praticamente minha obrigação.

Pena.

Tenho tantas dessas fotos aqui comigo. Péssima essa mania de sair sem a câmera, qualquer câmera que seja. Vou virando esse álbum, esse slideshow de imagens que foram e que eu vejo e revelo em mim, para mim e só. Como eu queria mostrar...

Talvez por isso Cartier-Bresson, um dos maiores de todos os tempos, tenha aposentado sua Leica no fim da vida e se dedicado à pintura.

Se eu não fosse tão ridiculamente sem jeitinho para desenhar, esse caminho seria um alívio e uma forma ótima de revelar todas as fotos que eu não tirei.

terça-feira, 5 de maio de 2009

Histórias

Algumas histórias acabam antes de começar.

Um desperdício.

É como ler as primeiras páginas de um livro que parece fantástico, querer saber mais, conhecer tudo, descobrir linhas e entrelinhas, reler, grifar, mas não fazer nada disso. Ao invés de mergulhar no livro a gente fecha e guarda, torcendo para abrir de novo um dia mas já sabendo que provavelmente ele vai ficar escondido na estante pra sempre. Guarda sabendo que o tempo vai passar e que aquelas primeiras páginas vão ir e vir, voltar de vez em quando trazendo uma lembrança boa e uma incômoda vontade de descobrir o que teria sido daquela história.

Ah se o livro fosse só meu... Há histórias que só são conhecidas a dois e se não o são, deixam uma saudade estranha.

Triste, arrependida e inquieta é a saudade do que não aconteceu.