quinta-feira, 21 de maio de 2009

Dona Cida

- Bom dia dona Cida.

- Bom dia filha. Tudo bem? Hoje eu vou ter que passear rápido com a Mel porque o almoço vai ter que sair mais cedo.

- Ah...

- É, a minha filha pediu. É todo o dia na mesma hora mas hoje vai ter que ser mais cedo. Que coisa né?

- O quê Dona Cida?


- Isso de tudo ser na mesma hora todo dia. Com você é assim também?

Eu ri. Vixe. Se ela soubesse...

- Que nada Dona Cida. A minha vida é uma doideira.

- Mesmo? O que é mesmo que você faz? É médica, professora?


Como é que eu vou explicar....

- Não, não. Eu sou formada em economia mas na verdade sou dona de bar, fotógrafa, bailarina, faço teatro...

O rosto enrugado e sisudo dela mudou de cor, os olhos brilharam. Pela primeira vez os olhos dela me chamaram a atenção e os dentes apareceram de verdade.

- Mesmo? Que linda! Você dança.... Eu também sou bailarina [atentem para o tempo verbal]. Danço de tudo. Menos tango. Ai menina, sabe que eu arraso na pista? As minhas filhas têm até ciúme de mim. O meu sonho era ter uma academia de dança mas agora né, nessa idade...

Quem diria... Nunca imaginei a Dona Cida num vestido rodopiando pelo salão.

- Já dancei tanto nos bailes por aí. E o Rei Cone? Que paixão! Quando tocava o Rei Cone meu coração pulava que parecia que ia explodir.

Rei Cone....

- Jura Dona Cida?

- Minha Nossa Senhora. Era tão bonito. Às vezes eu ainda danço mas não é mais a mesma coisa. Na época do Rei Cone os moços usavam até lenço de tecido na mão para não sujar a mão da dama.


O mundo muda, gente. Como muda.

- O mundo muda né minha filha? Parece que foi ontem. Já passei por tanta coisa.

Ela já tinha esquecido que o almoço teria que sair mais cedo e estava toda falante. Eu deixei prá lá a pressa. Estava adorando conhecer mesmo a Dona Cida pela primeira vez.

- Sabe que o meu marido dançava muito bem? Fomos casados por 35 anos até ele virar amante da minha colega.

Sobrancelhas arqueadas, encorajando o desenrolar da história.

- É, pediu o desquite e tudo. Fomos lá, na frente do juiz. Fiquei tão nervosa que pedi para beber a água do copo do juiz. Prá quê desquitar? Me fala. A gente nem dormia mais na mesma cama. Ele que ficasse com a colega na casa dela, eu arrumava um “amigo” para mim e estava tudo certo. Besteira essa coisa de desquitar naquela idade. Quatro filhos criados, neto, bisneto. Mas ele quis mesmo assim.

Moderna a Dona Cida. Prática. Balancei a cabeça pensativa, interessada.

- A tal colega era minha amiga mesmo. Freqüentava a minha casa, comia da minha comida. Até reunião de Tumpeuér [Tupperware] ela fez com as minhas amigas. Gente é gente, né?

Gente é gente, Dona Cida.

- Mas tem gentes e gentes né Dona Cida?

- Se tem... Sabe que no fim ele voltou para casa? A outra lá mandou ele embora porque disse que ele sujava muito a toalha de rosto dela.


Ela riu.

- Ele morreu de repente no meu banheiro. Enfarte.

Cara de susto.

- Outro dia me mandou uma carta na sessão de mesa branca pedindo perdão, dizendo que me amava. Eu gostei. Já a outra lá tá toda só. Acredita que ela ainda me liga às vezes? Fala dele, pergunta se pode ir em casa. Uma coisa.


Eu sorri. O que é que eu vou dizer depois de uma história dessas?

- Nossa, eu preciso ir filha. O almoço precisa sair mais cedo hoje. Depois a gente conversa mais. Vamos Mel, vamos.

E foi. Devagar. Ela e a beagle já velhinha. Velhinhas. Cheias de histórias para contar.

Como é que eu encontrava a Dona Cida todos os dias e não conhecia essa mulher? Ela precisa tanto falar e eu adoro ouvir. Adoro. Maldita pressa que faz a gente passar voando pelas coisas e pelas pessoas, impedindo que saibamos do “Rei Cone”, da paixão da Dona Cida pela dança, dos lenços de tecido nas mãos dos rapazes, da história de amor dessas mulheres, dos motivos daquelas rugas e daqueles olhos sisudos.


Ainda bem que hoje eu parei para ouvir.

5 comentários:

Eloá disse...

Que texto fofo, Ju.

ADOREI!!!!

Marina F. disse...

Rei Cone foi ótema...hehehe....este texto me lembrou o livro do ouriço...
bjs.

Gi disse...

Jú .... isso foi demais mesmo!
Nossa! Impressionada com o texto e com a Dona Cida...
É, uma pessoa mais velha não é apenas uma pessoa velha né?! É uma vida longa já vivida.

Menininha bossa-nova disse...

Hahaha, beber água do copo do juiz e a parte da toalha de rosto são as melhores... Muito legal...

Ju Hilal disse...

Sim queridos, a mulher é uma figura. Cheia de histórias para contar como a maioria das pessoas que vivem passando pela gente com um "Oi, tudo bem? Tudo, e você? Tudo. Então tá."
Também adorei o Rei Cone e a história do copo do juiz...rs
Beijos