Abriu a porta do quarto e esgueirou-se por debaixo das cobertas até aconchegar-se no colo ossudo da mãe. Não disse nada, não precisou. Ela sempre o compreendera, sempre soube o que pensava, o que sentia, e naquele dia não seria diferente. Mãos alisaram cabelos desgrenhados e Matheus Ricardo adormeceu um sono nervoso sob os olhos atentos da mãe.
E veio o sonho. Deus entediado, o anjo fofo taurino, o fim do mundo por vir, redemoinhos de substância amorfa, o buraco negro. Quando avistou os olhos da pessoa que chegou chegando, acordou assustado, a testa encharcada e outras partes também. Sua mãe sorriu um riso terno: - Matheus Ricardo, Matheus Ricardo – ela amava o som do nome que havia escolhido para o filho, nunca dizia só Matheus ou só Ricardo, os dois nomes juntos tinham a sonoridade perfeita - molhando a cama de novo? Ô meu menino...
Seguindo as dicas de seu terapeuta de anos, Matheus Ricardo anotou os detalhes do sonho, descreveu as nuvens, as conversas. Aquilo havia sido muito intenso e certamente escondia uma lição, uma dica, um sinal. Dona Jacintha, limpando os líquidos da cama já cheia de manchas de tons amarelados diversos, pensava em como solucionar a sinuca de bico em que o filho se encontrava.
Quando Maura Rúbia apareceu, achou que os problemas amorosos de seu pimpolho estivessem finalmente solucionados. Ela era perfeita, pensou. O nome duplo de sonoridade perfeita, o gosto pelo jogo de tranca, pelas conversas sobre testes de revistas femininas, a personalidade forte, racional, decidida... O gênero. Finalmente Matheus Ricardo deixaria daquela besteira de brincar de gogo boy com os amigos de peito depilado, namoraria uma fêmea de boa família e lhe daria um neto.
Acontece que nos últimos tempos a relação não estava mais como antes. A química, a afinidade, as conversas sobre os testes de revistas, os jogos de tranca, nada mais lhe dava o prazer de antigamente. Seis anos haviam se passado e Jacintha sentia que sua relação com Maura Rúbia havia se esgotado, e que assumirem um compromisso àquela altura seria um erro terrível. Para completar, Matheus Ricardo voltara a ter amigos depilados, de cabelos esquisitos, lenços de estampa xadrez, ipods com músicas eletrônicas e cds de musicais norte americanos. E então Carlos Frederico apareceu. Desde que o jovem alto, estilo Gianecchini, surgira na vida de seu filho, os dois não se desgrudaram mais. Matheus Ricardo voltou a assobiar canções do ABBA, a treinar seus passos de gogo boy, voltou a sorrir e à noite só se ouvia o nome de Carlos Frederico povoando seus sonhos. Aquele seria mesmo o seu caminho e ela, Jacintha, como uma boa mãe, teria de entender.
Os conflitos do filho, porém, permaneciam. Ele achava que tinha uma dívida para com a sociedade, para com Maura Rúbia e insistia na realização do noivado. Comprara as alianças no dia anterior e chegara dizendo que faria o certo. À noite se encontraria com Carlos Frederico para dar-lhe a notícia e seguiria o seu destino ao lado da mulher que seria a nora perfeita para sua mãe.
A noite com Carlos Frederico começara perfeita. Falaram sobre tudo, boates, os lançamentos da Broadway, o timbre da Barbra Streisand, a SPFW, as tendências em cortes de cabelo. A conversa fluía fácil, olhares se encontravam, mãos se tocavam, a companhia era boa, o interesse genuíno. Uma coisa levou a outra, o vinho alterou os estados e a noite acabou com os dois exauridos e satisfeitos na horizontal. No auge do aconchego, Matheus Ricardo deu a bombástica notícia a Carlos Frederico de que iria se casar com Maura Rúbia e de que já havia até comprado as alianças.
Indignadíssimo e com o coração ferido, Carlos Frederico fez a louca e saiu desembestado pela rua, aos prantos, echarpe esvoaçando às suas costas. Matheus Ricardo na janela acenava, pedia perdão e limpava o nariz nas cortinas de voal. Do outro lado da rua Maura Rúbia observava imóvel a interação.
Sem esboçar qualquer reação, pegou o celular e apertou a discagem rápida número 2. Esperou.
- Alô. Maura Rúbia?
- Que cena bichesca foi essa agora, Matheus Ricardo? Olha eu aqui do outro lado da rua. Eu vou ligar para a sua mãe.
Desligou e apertou a discagem rápida número 1.
Sem reação, Matheus Ricardo fechou as cortinas, encolheu-se em posição fetal e esperou a exaustão trazer-lhe o sono. No quarto ao lado, enquanto ouvia os desaforos da mulher que seria sua nora, Jacintha tomou uma importante decisão.
Os sinais do sonho do filho sobre o Todo Poderoso, o tédio divino e o fim do mundo vieram apenas dar-lhe força para que tomasse as atitudes que sabia ter de tomar. A felicidade de seu filho guiaria seus passos.
Deus Todo Poderoso, por seu turno, teve no sonho do filho de Jacintha os sinais de que precisava para sair da sinuca de bico em que Ele próprio, o Magnânimo, se encontrava. Sabia agora o que teria de acontecer e gostava do que estava por vir. Gostava muito da idéia. Novos ares, pensou, ares de inexistência lhe fariam bem.
Preocupava-lhe apenas a questão não resolvida da pessoa que chegaria chegando...
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2 comentários:
Gostosoooo!!
Mandou bem, Juju. O anjo taurino que me guie agora. Rumo ao 5º!
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