sábado, 10 de outubro de 2009

Folhetim Vagabundo - Piloto: Capítulo Final




Leia os capítulos anteriores começando aqui:

*
*
Pára tudo. Isso aí é o homem que tem circulado de cueca boxer pelas minhas fantasias nos últimos dois meses? Essa coisica? Ah, pelamor. Tão interessante pelos buraquinhos do binóculo... Que merda.

Com um mal humor do inferno estampado na testa, Samantha olhou lentamente para as duas figuras ajoelhadas aos pés da cadeira onde ela estava amarrada. Aquelas mulheres, que antes lhe pareciam tão interessantes, intrigantes, sedutoras, se transformaram em meras cadelas babentas, banais, nas mãos daquele tampinha com nome de loser total. Estevão. Ora, faça-me o favor. Nunca gostara do nome Estevão. Parecia-lhe coisa de contador nerd com aquele bigode grande nojento onde os restos de comida ficam alojados indefinidamente.

Sacudiu a cabeça para espantar aquela visão repugnante até que seus olhos pousaram sobre o corpo ensangüentado, inerte, no canto do quarto. Ricardo. O mala grudento que ultimamente vinha lhe dando surtos de ica agora lhe parecia tão adorável. Pobre Ricardo. Carreira promissora, shows agendados, diziam as críticas dos folhetins populares que tinha potencial para ser a próxima revelação das rádios motel, o novo Wando, o terror das fêmeas devoradoras de chocolate. Jazia agora com a faca de cozinha entalada no peito e os membros estirados, lambuzados, na poça vermelho escuro no assoalho. Pensando bem, achou que aquela morte lhe caía bem. Dramática, passional, exagerada. Achava que a morte do ex-futuro novo Wando deveria ser mesmo assim, meio ridícula, e que aquilo seria um prato cheio para os repórteres dos tablóides de semáforo no dia seguinte.

E a sua morte? Ah, a sua morte não. Imaginava a sua morte muito diferente, um clima noir, uma coisa meio chique-sinistra, instigante. Um ritual refinado e intenso tendo como clímax o deslizar da lâmina afiada pelo punho do antebraço esquerdo, o 48º corte, o derradeiro, dilacerando veias e artérias e fazendo jorrar o sangue para fora do corpo, jatos ritmados cada vez mais fracos, bombeados pelas últimas contrações cardíacas da sua existência.

Claro que naquele cenário de fim de novela mexicana de quinta, o seu ritual intenso chique-sinistro tinha ido para a merda. Olhou para a caixinha de veludo vermelho com um pedaço de picanha dentro e não teve dúvidas de que a sua noite com sol tinha virado um furdunço de péssimo gosto, uma noite de excursão de farofeiro em busca do sol, um fracasso retumbante em matéria de situação refinada para desencarnar. E então Samantha emputeceu.

Ora, passara anos, quase uma vida em depressão, cuidadosamente desprezando a felicidade, descartando pessoas, recusando amores, planejando seu grand finale, sua partida triunfal e agora isso? Quando lera no jornal a história dos Assassinos das Mulheres Desesperadas ficara empolgadíssima. O requinte do modus operandi, o jogo de voyerismo, as sutilezas do presente, do recado no espelho (sempre quis encontrar um recado de batom no espelho do banheiro...). Aquilo lhe parecera perfeito, o plano magistral, os aliados ideais para a sua aspiração maior. Teria consigo os profissionais da coisa, o supra sumo, a nata do passar dessa para uma melhor.

Entrara no jogo, esperara ansiosa pelo momento, pela noite que finalmente lhe traria o sol, e então... Lama. Aquela lama. Um Estevão, duas vadias, o corpo do novo Wando e um pedaço de picanha já meio ressecado em um quarto lambuzado de sangue. Para completar, o dedão do pé que Bárbara havia chupado não parava de incomodá-la, coçando loucamente. Maldita micose mal curada, pensou. E então Samantha decidiu que não terminaria sua vida assim.

Deixou-se levar para a cama estudando cuidadosamente suas opções de escape. Avistou a faca, a caixa de veludo, o vibrador. Enquanto era amarrada à cabeceira, lembrou-se dos episódios dos seriados baratos de luta que havia assistido, dos movimentos ágeis, das chaves de perna, dos golpes certeiros. Recapitulou também mentalmente as lições da aula de defesa pessoal que fizera há meses com o professor colombiano de bafo terrível. Sua testa franziu ao lembrar-se do tal bafo mas logo se conteve. Precisava entrar no jogo, fingir prazer, deixá-los à vontade. Precisava estar livre para livrar-se daquele imbróglio e poder morrer como havia planejado.

Conhecia Ana, sabia do que gostava, ela seria o caminho. Quando Ana beijou-lhe a boca, correspondeu intensamente. Línguas se enroscaram e coxas se roçaram enquanto Estevão e Bárbara observavam satisfeitos. Samantha suspendeu o beijo, olhou para Ana, olhou para suas mãos amarradas e aguardou. O recado estava dado. Ana imediatamente desfez as amarras. Ela queria mais, queria suas mãos por toda a parte. Que mal haveria afinal? Samantha havia entrado no jogo, pensou.

E então a merda chegou ao ventilador. Samantha reuniu todas as suas forças, aproveitou a descarga de adrenalina que lhe preencheu os poros e fez a desvairada. Em um movimento absolutamente preciso, entuchou o vibrador GG na boca aberta de Ana até a goela, fazendo-lhe engasgar e quase sufocar antes de reencontrar de perto o seu jantar. Com um salto fantástico, alcançou a faca no peito de Ricardo e lançou-a no ar. A lâmina reluziu em sua trajetória e acabou por alojar-se na caixa craniana de Estevão, meio de lado, sangue pingando como uma tiara barata de Halloween.

Bárbara soltou um grito horripilante com a visão do marido de cabeça partida e lançou-se para cima de Samantha, fogo nos olhos, dentes cerrados.

Samantha observou cuidadosamente o avanço desengonçado de Barbara, aproveitou-se da sua vulnerabilidade causada pelo ódio arrebatador e lançou-lhe um golpe na traquéia, seguido de uma chave de braço que lhe tirou o ar. Quando o corpo em suas mãos parou de se mover, Samantha arremessou-o na parede e voltou sua atenção para Ana que começava a se recuperar do ataque inesperado.

Olharam-se. Sem expressar qualquer emoção, Samantha apanhou a pesada caixa de veludo vermelho com picanha e tudo, segurou-a com cuidado em sua mão direita e arremessou-a com toda a força na direção de Ana que ficou paralisada. Caixa e picanha voaram pelo ar como que em câmera lenta, girando, espirrando sangue pelo quarto que àquela altura faria Jason, Chuck, Krueger e a Mamba Negra morrerem de inveja. A quina da caixa atingiu em cheio a têmpora direita de Ana, seguida pela picanha que lhe chulapou a face, fazendo-a tombar lentamente, saculejante e com os olhos revirando.

Samantha olhou ao redor. Seu plano havia funcionado mas não havia tempo a perder. Retirou cuidadosamente a faca do crânio de Estevão e limpou-a no edredom. Tomou-lhe também as chaves que estavam no bolso e seguiu para o banheiro. Entrou no chuveiro deixando a água lavar-lhe o sangue e levar-lhe a alma. Enxugou-se rapidamente, vestiu o robe de seda negra com cheiro de naftalina que retirou do fundo do armário e saiu em direção à porta. Parou... Olhou ao redor, avistou o que buscava, recolheu-o e saiu, deixando a porta aberta às suas costas.

...

Respirou fundo, colocou a chave na fechadura, girou. A porta se abriu e ela finalmente avistou os aposentos que nunca achou que conheceria. À sua frente a figura da morena de cabelos negros e seios pequenos lhe observava do além. Entrou, fechou a porta, sentou-se com cuidado na poltrona branca de pés tortuosos entre a luminária e a mesa do telefone. Passou as mãos pelo tecido macio enquanto olhava para a sua própria janela. Olhando de onde estava, ninguém imaginaria o que escondia aquela janela...

Já o lugar onde se encontrava era absolutamente normal. Casa sem sal, coisa de decorador insípido e pouco ousado, um lugar pastel. Ah como havia fantasiado sobre o dia em que estaria ali... Mal sabia ela.

Chacoalhou os pensamentos e lembrou-se do que tinha de fazer. Pegou o telefone da mesinha, discou os números que não se lembrava de já haver discado. Esperou.

Love Love Love
Love Love Love
Love Love Love


Fechou os olhos por um instante. Abriu-os, embaçados. Coração na boca pela emoção do que estava por vir.

There’s nothing you can do that can’t be done
Nothing you can’t sing that can’t be sung
Nothing you can say but you can learn how to play the game
It’s easy

Retirou cuidadosamente a faca do bolso do roupão, seus olhos refletidos na lâmina enviavam-lhe um milhão de mensagens instantâneas. Uma lágrima solitária lhe escapou e molhou a face. Não se lembrava da última vez que havia chorado de emoção.

There’s nothing you can make that can be made
No one you can save that can’t be saved
Nothing you can do but you can learn how to be you in time
It’s easy

Era chegada a hora. Esperaria o refrão. Sempre gostara desse refrão e um dia chegou a acreditar no que dizia. Seria perfeito. Posicionou a lâmina sobre o punho esquerdo na altura das veias saltadas, segurou a respiração e aguardou o momento, a trilha perfeita para o 48º. O derradeiro.
E então ouviu o refrão. Um suspiro sentido. E mais nada.

All you need is love
All you need is love
All you need is love, love
Love is all you need...

5 comentários:

Menininha bossa-nova disse...

Jesus!!

Gostei, Jujubs. Costurando tudinho. Orgulhinho da minha melhor amiga.

Mas quem diria que nossa primeira história seria esse folhetim sangrento, heim? Hahahaha. Bora pro próximo!

Anônimo disse...

Eu só não entendi se a questão era ajudar ou sacanear o próximo autor...rsrsrsrs

Mas com certeza teve um gran finale!!! (Digno de Juliana Hilal)

Marina F. disse...

adorei, querida.
arrasou!

Carô disse...

Juju, final perfeito :-)!!! Também adorei!!!
Beijos

Ju Hilal disse...

Obrigada queridas e anônimo simpático...rs
Agora é pegar o próximo touro na unha... E que touro, né Jujuba?
:)
Beijão