terça-feira, 8 de abril de 2008

Pena

João da Silva com a chave inglesa no escritório. Foi assim que encontraram o pedreiro naquela tarde fria de maio. Ensangüentado, com a ferramenta na mão, debruçado sobre o cadáver da dondoca.

O caso teve uma repercussão estrondosa. Seria o primeiro acusado de assassinato a ser julgado de acordo com a nova lei, promulgada recentemente, instituindo a pena de morte no Brasil.

A mídia em polvorosa transformou o homem em celebridade maligna instantânea. Seus familiares, amigos, vizinhos, papagaio e o dono da padaria passaram a ser incessantemente assediados por repórteres ávidos por detalhes sórdidos da vida do ser abominável. Seus filhos deixaram de ir à escola, sua mulher foi dispensada por telefone pela patroa e entrou em depressão. Até suas cuecas foram roubadas do varal por moleques que as venderam dias depois em um leilão na internet.

Os magistrados envolvidos no trâmite da ação deram-lhe total prioridade. Não pegaria bem um caso como este durar os mesmos 15 anos de um processo normal. Não. Este caso seria emblemático e deveria ser julgado impecavelmente, em tempo recorde.

Eis que, três anos decorridos, a sentença foi proferida e o júri sequer titubeou: culpado, condenado indubitavelmente à pena capital. O homem fritaria na cadeira elétrica com direito a buchinha molhada na cabeça, extrema unção, último pedido e platéia morbidamente curiosa atrás da cortina. E assim foi feito. Sua execução foi parar até, sabe Deus como, no You Tube.

A ele se seguiram centenas de condenados por este Brasil afora, a ponto de os espectadores e, por conseguinte, a mídia, nem se interessarem mais. Matar supostos criminosos já não dava mais Ibope, o povo havia se acostumado ao circo. A atração teria de ser remodelada.

O que o grande público, repórteres e magistrados ficariam sabendo muito tempo depois, é que João da Silva, o pedreiro, se cobriu de sangue ao tentar socorrer a vítima, golpeada por outrem com uma arma muito parecida com a chave inglesa, que o trabalhador usara minutos antes para reparar o encanamento do lavabo.

Sem recursos financeiros para contratar um bom advogado, sem recursos intelectuais para argumentar e defender-se e com as circunstâncias em seu total desfavor, João da Silva foi morto por tentar ajudar.

A história acima é obviamente fictícia, mas poderia não ser. Dia desses deu no jornal que 47% dos brasileiros são favoráveis à instituição da pena de morte no país. Se você ficou chocado, como eu, saiba que esse número já foi muito pior: em 2007, 55% dos brasucas queriam ver seus criminosos passarem dessa para uma melhor (ou pior, vai saber) por determinação do Estado.

A minha impressão é de que se trata de uma fatia excessivamente gorda para um país, até onde se sabe, cristão. Afinal, a não ser que eu tenha entendido tudo errado, a lei do “olho por olho, dente por dente” é ligeiramente diferente de “dê a outra face”, não?

Além da óbvia ululante diferença conceitual, há a seríssima possibilidade de que um olho seja castigado com um dente ou uma unha com um olho, e assim vai. João da Silva que o diga.

Decisões judiciais são sujeitas a erros como quaisquer decisões humanas. Testemunhas são corruptíveis e passíveis de enganos, pistas são deturpáveis, júris são manipuláveis e advogados têm poderes de argumentação e convencimento tão distintos quanto o preço de seus ternos. Na verdade, a dança nos tribunais aproxima-se muito de uma brincadeira infantil de máfia, não sendo para mim admissível que vidas sejam tiradas a partir de decisões tomadas nesse tipo de jogo. Outras penas são reversíveis, consertáveis, compensáveis. Não há como voltar atrás na pena capital.

Além da possibilidade de se assassinar friamente um inocente, há outras questões envolvidas. Como definir, por exemplo, quais crimes seriam punidos com a penalidade máxima? Assassinatos em geral? Assassinatos premeditados com toques de crueldade? Estupros? Como definir a arbitrária linha de corte para o que seria suficientemente perverso a ponto de ser punido com o extermínio? A quem caberia esse direito?

Tenho cá para mim que o Estado não pode tirar uma coisa que não pode nos dar. Diferentemente da liberdade ou da propriedade privada, a vida é um bem que deveria estar acima das leis humanas.

Que valha, portanto, o “aqui se faz, aqui se paga”, e entendo que mandar o fulano para o outro mundo não seja a melhor maneira de se fazer isso. Criminosos e pessoas perigosas à humanidade devem ser isoladas do convívio social, mas não exterminadas. E nem me venham com o argumento capcioso de que a sociedade não tem a obrigação de sustentar vagabundos. Se há falhas no sistema prisional, tais falhas devem ser corrigidas para que os detentos sejam produtivos, compensem seus custos com trabalho e, na medida do possível, regenerem-se. O assassínio de condenados para reduzir a superlotação de cadeias e diminuir os custos de tais instituições não é uma solução, é um absurdo. Não há que se corrigir um erro com outro maior.

Por fim, me vem à cabeça um último argumento, utilizado pelos defensores da pena de morte como recurso desesperado em todas as discussões sobre o tema: se você perdesse alguém que ama assassinado de forma brutal, mudaria de opinião. Minha resposta? É possível. Nessas condições, com a razão encoberta pela ira, eu provavelmente defenderia com unhas e dentes a aplicação da pena capital ao algoz de meu ente querido. Não sejamos, porém, irresponsáveis. Um assunto dessa seriedade e com conseqüências literalmente mortais, deve ser matéria a ser estudada, discutida e decidida por pessoas imparciais, esclarecidas e com seu julgamento livre de rancores pessoais.

Por sorte, o bom senso tem prevalecido no Brasil desde os idos de 1870 e espero que continue assim indefinidamente. João da Silva agradece.

Um comentário:

Candice disse...

Oi Juju
Você vê... O engraçado é que o último lugar que pensei que um dia me despertaria a vontade de ter uma horta é a Inglaterra rs...
A sensação que eu tenho é que as pessoas tem tanto por aqui que sentem falta do simples...
Human beings...
bjuuus