terça-feira, 18 de março de 2008

O Jardim

A minha rua tem um jardim bizarro no meio do nada. Digo bizarro porque ele é estranho mesmo, e digo no meio do nada porque ele não fica em casa nenhuma, aparentemente não pertencendo a ninguém.

Fica em uma pracinha numa encruzilhada, com flores de tipos e cores diversas, dispostas desordenadamente pelo espaço. Até aí, tudo bem. Apenas um jardineiro desorganizado.

Ocorre, porém, que as plantas amontodadas são entremeadas por faixas de cimento, como se fossem corredores de cemitério, e circundadas por muros pintados de rosa e branco em uma tentativa frustrada de simulação de tijolos à vista. Há também uma espécie de gazebo feito do mesmo material e com a mesma estampa, que abriga um varal e algumas cadeiras do tempo da vovó. No canto, há um altarzinho onde mora uma imagem de Nossa Senhora, com uma luz sinistra que às vezes se acende, imagino, para iluminar a vida da santa e dos seus seguidores.

Acompanho o desenvolvimento desse jardim já há algum tempo, desde antes que essa rua fosse minha. Sempre que passava por lá, o agrupamento estranho de plantas me chamava a atenção. Depois, os muros de cimento pintado como desenhos de criança e o estranho gazebo passaram a intrigar-me. O altar e os corredores tétricos completaram o cenário nonsense, e desde então, descobrir a identidade do responsável por tal obra surreal passou a fazer parte da minha lista de objetivos inúteis.

Sim, porque o jardim, ainda que de mal gosto, era obviamente cuidado. Uma instalação desse vulto não surge do nada, muito menos seria fruto da administração pública que, espero, jamais dedicaria nossos tostões a uma iniciativa tão inusitada.

Alguém, por incrível que pareça, tinha nesse jardim o seu projeto mais ambicioso. Uma pessoa, em algum lugar, dedicou horas e horas de sua vida à sua concepção, ao cultivo de suas plantas e à construção e decoração de suas edificações.

Os motivos que moveram o seu criador eram igualmente misteriosos para mim. Seria este um empreendimento movido por amor, uma vez que ladrilhar a rua com pedrinhas de brilhante seria demasiadamente custoso e ofuscaria a visão dos motoristas? Seria este um experimento com espécimes transgênicos, testados no mais inocente dos lugares para evitar fiscalizações e protestos de grupos de ambientalistas?

Durante anos, todas as vezes em que passava por ele, procurava em vão pelo ser que o cultivava. Por uma coincidência do destino, passei a morar nesta rua e, consequentemente, a avistar o jardim diariamente, em horários diurnos, noturnos e madrugais. Nunca, entretanto, encontrei o jardineiro dedicado.

Eis que em uma tarde de sábado, passeando pela praça, avistei, enfim, o responsável pelo meu objeto de estudo e contemplação: um senhorzinho já curvado, com cabelos brancos penteados de lado e uma calça de elástico já bastante gasta. Ele assoviava e, com uma pequena pá em mãos, observava, satisfeito, a sua criação.

Fui me aproximando, pé ante pé, curiosíssima, mas ao mesmo tempo cuidadosa para não espantá-lo. Eu me sentia como um observador de pássaros que finalmente avista um pica-pau-bico-de-marfim. E cheguei, sorrindo. Ele me viu, e sorriu. Pronto, o primeiro contato havia sido pacífico e bem sucedido.

- Boa tarde, senhor. Cuidando do jardim?

- Boa tarde, filha. Pois é. Você gosta?

Eu gostava do jardim? Àquela altura já não sabia mais. Ele era bizarro, sempre seria, mas eu já havia me acostumado com ele. Além disso, há coisas que não devem ser ditas e o senhorzinho não merecia ouvir outra resposta a não ser...

- Gosto, claro. É muito bom ter um jardim assim, no meio da cidade.

- Ele é da minha mulher, sabia?

- Não...achei que o senhor fosse o jardineiro.

- E sou. Na verdade é um presente para ela. Ela sempre quis ter um jardim.

- Puxa. Ela deve ter ficado muito feliz, o jardim é muito caprichado.

- Tenho certeza de que onde quer que esteja, ela está muito feliz. Sabe, filha, a vida é engraçada. Enquanto ela estava comigo, não pude criar esse presente pois tinha que cuidar dela. Agora que tenho o presente, ela não está mais comigo.

Não sabia o que dizer. Apenas sorri. Ele entendeu. E ficamos lá, observando as plantas, em um diálogo silencioso. Agora era fácil compreendê-lo.

Fiquei emocionada, confesso, observando aquele jardim como que pela primeira vez. Olhei as plantas, os muros, o gazebo e o altar sob uma nova perspectiva, e o que antes era apenas estranho, agora fazia sentido como parte de algo maior.

Aquele senhor havia dedicado o resto de sua vida a presentear alguém que não mais existia. Todos os detalhes, todas as idéias materializadas ali naquele jardim eram parte daquele presente. Um grande amor explicava, por fim, o meu mistério.

Nunca mais encontrei o jardineiro.

Passo ainda pelo jardim todos os dias, mas agora observo com carinho a sua estranheza. Sim, porque estranho, ele sempre será, mas não fazemos mesmo as coisas mais estranhas por amor?

3 comentários:

Candice disse...

Oi Juju
Menina, eu sei que jardim é esse e confesso que sempre achei ele muito curioso... Linda história, tô adorando esse blog viu!
bjkinhas

Eduardo disse...

Que história linda!
Que texto lindo!

Anônimo disse...

Eu queria uma horta! :(
Lindo o texto Juju!
Bem diferente do jardim...hahahaha